Para entender: Mano Negra

por Leonardo Vinhas

Uma das bandas de rock mais influentes da história da França, o Mano Negra teve impacto ainda maior no rock dos países de idioma espanhol da América Latina (no Brasil ficou com o status de banda cult). Do México ao Uruguai, a numerosa trupe deixou um legado musical que marcou o rock dos anos 1990 (especialmente na Argentina) e que se estende até hoje.

Manu Chao, seu irmão Antoine (“Tonio”) e o primo Santiago Casariego (“Santi, el Águila”) cresceram juntos, e passaram a adolescência frequentando squats e tocando em bandas de folk, rockabilly e rock’n’roll no underground parisiense. Manu e Santi haviam conseguido atrair certa atenção com a banda Hot Pants, mas, como havia sido com todas suas empreitadas anteriores, a formação não se sustentou. Decidiram então chamar Tonio e outros amigos para começar tudo de novo. Assim nasceu o Mano Negra, em 1987.

O primeiro disco, “Patchanka” (1988), era uma amostra da quizomba indecifrável que nortearia a carreira da banda. Havia flamenco, rockabilly, rap, punk à la Clash e Chuck Berry unificados em uma música simultaneamente coesa e plural, cantada em francês, inglês e espanhol (e, mais tarde, até em árabe). A mistureba valia também para o lineup do grupo: outros conjuntos apareciam no estúdio e tocavam como se fossem parte do Mano Negra.

Um destes grupos, os Casse-Pieds, acabou “aderindo” de vez: Daniel Jamet (ou “Roger Cageot”, guitarra), Joseph Dahan (“Jo”, baixo), Philippe Teboul (“Garbancito”, percussão) e Thomas Darnal (“Helmut Kromar”, teclados) se somaram a Manu (voz e guitarra), Santi (bateria) e Tonio (trumpete e vocais) e saíram em turnê para divulgar o álbum de estreia. Além deles, outro integrante dos Casse-Pieds, o guitarrista Tomas Arroyos (“Tomasito”) continuou com eles como técnico de som, e era considerado integrante da banda, assim como o roadie Jacques Clayeux (“El Jako”) – incluindo presença nos clipes e participações em entrevistas.

O Mano Negra fez sua fama nessa época não só pela combinação musical atípica, mas principalmente pelas suas enérgicas e nada óbvias apresentações ao vivo. Ensaiavam até oito horas por dia, durante semanas a fio, e quando subiam ao palco, exibiam segurança e coesão em meio a energia bruta que transbordava dos altos falantes. O resultado era sempre imprevisível, mas jamais aleatório ou descontrolado. Lançavam-se em stage dives acrobáticos, revezavam-se nos instrumentos, chamavam o publico ao palco (ou desciam para tocar na plateia), desafiavam seguranças…

“Puta’s Fever”, o segundo álbum, obteve grande sucesso, e expandia a intensidade e o leque musical de seu antecessor. Nessa época, já tinham incorporado mais um integrante, o trombonista Pierre Gauthé (“Kropol”). A turnê de promoção cumpriu todo o circuito “obrigatório” de clubes e festivais pela Europa, mas teve um apêndice parisiense por bares e prostibulos em Pigalle, a zona do meretrício da capital francesa. Sim, shows em puteiros e casas de strip-tease, que terminavam na rua, com a multidão e a banda subindo em carros e tocando sem instrumentos elétricos!

Ainda no embalo de “Puta’s Fever”, fizeram sua primeira turnê pela América Latina, tocando em países como Peru, Equador e Bolívia, muitas vezes em lugares que jamais haviam visto uma banda de rock. Porem, não emplacaram nos EUA, apesar das apresentações feitas por lá.

A banda nega, mas há quem acredite que “King of Bongo” (1991) foi concebido para agradar aos norte-americanos. Mais letras em inglês, guitarras mais pesadas (assumindo o hardcore explicitamente em “Welcome In Occident” e “Letter to The Censors”) e clipes mais caros são argumentos que ajudam a sustentar essa teoria. Resultou o disco mais “convencional” do Mano Negra – o que não os impediu o grupo de continuar com as turnês esquisitas.

Tanto que veio a Cargo 92, turnê feita de barco (!) pela América Latina, passando por Cuba, México, Uruguai, Brasil, Argentina, Colômbia e outros países, ao longo de quatro meses e em parceria com a companhia de teatro Royal de Luxe, que se apresentava ou antes ou juntamente à banda. Foram essa turnê e o álbum seguinte, o inovador “Casa Babylon” (1994), que tornaram o Mano Negra uma lenda para o rock de países como Argentina e México. O disco foi pensado como um passeio por rádios do mundo todo, com samples, composições próprias e gravações de rua se integrando em única peça artística de muitas cores e faces.

O problema é que “Casa Babylon” começou a ser gestado durante a Cargo 92. A rotina estressante de apresentações, trabalhos no barco (os músicos eram também a tripulação), viagens por terra, entrevistas e sessões de estúdio começou a gerar tensão entre os membros e a primeira baixa foi Tonio, que deixou a banda assim que retornaram à França. As gravações e os ensaios continuaram ao longo de vários meses, sem hora para acabar. Esgotados, Daniel Jamet e Jo Dahan também pularam fora. Quando o disco finalmente saiu, Manu Chao determinou que deveriam fazer uma turnê (já com outros músicos agregados) de trem pelos Andes, o “Expresso de Gelo e Fogo”. Seis descarrilamentos, doenças tropicais, ameaças de narcotraficantes e guerrilheiros, rigores climáticos: o cenário infernal fez com que vários integrantes desertassem ao longo do caminho, e quando a viagem chegou ao fim, a banda também se foi.

Manu tentou seguir tocando o repertório da banda com outros músicos (dos “antigos”, apenas Pierre Gauthé seguia com ele), mas, a pedido de Santi e Tonio, parou de fazê-lo. Isso gerou uma tensão entre Manu e Santi que nunca se resolveu por completo. Quando Dahan, Darnall e Teboul decidiram fazer o documentário “Pura Vida!”, sobre a trajetória da banda, Manu se recusou a participar.

“Pura Vida” faz parte do DVD “Out of Time” (2005), dois discos com um documentário sobre os shows em Pigalle, um compilado de apresentações pelo mundo, vários clipes e trechos de shows, além do filme já citado. É item obrigatório para qualquer entusiasta de música desafiadora e livre. Ou para fãs de teatro (sim, teatro!). Ou do espírito beatnik. Ou… bem, de qualquer coisa que tenha a ver com tesão pela vida, com crença na própria arte, com levar as paixões pessoais às últimas consequências.

Em sete anos de atividades, o Manu Negra gravou quatro discos de estúdio e um ao vivo (“In the Hell of Patchinko”, 1992). Abaixo, cinco músicas para você adentrar no universo do grupo:

“SALGA LA LUNA”

Considerada a obra-prima da banda, cruza o flamenco espanhol com escalas médio-orientais para embalar uma poesia sentida e delirante.


“MALA VIDA”

O maior hit, uma avalanche punk feita com flamenco e música de cabaré francês.


“SIDI H’ BIBI”

A versão do Mano Negra para este tema tradicional da Argélia era um dos pontos altos dos shows. Cantada por Garbancito, que incitava o público a subir no palco e se descabelar.


“THE MONKEY”

Stooges e Beastie Boys dançam sobre uma base percussiva veloz, enquanto samples de todo tipo de discurso se entrelaçam: um ótimo exemplo de como “Casa Babylon” não tinha nenhum limite autoimposto.


“LA VIDA”

Dessa combinação de ska, raggamuffin, dancehall e rock, veio boa parte dos primeiros discos do Skank, do Rey Azúcar, dos Fabulosos Cadillacs, e de mais uma porção de discos…


– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yel

Leia também:
– Para Entender: New Model Army -> Extensa discografia que merece ser vasculhada (aqui)
– Para Entender: The Replacements -> Em seu auge, a banda lançou discos perfeitos (aqui)
– Para entender: Black Crowes -> Uma música bela, intensa e pouco acomodada (aqui)

10 thoughts on “Para entender: Mano Negra

  1. Excelente matéria!! Confesso que conheço muito pouco desta banda.
    E já que vc citou, que tal uma matéria sobre a maior banda da América Latina, Fabulosos Cadillacs ??

  2. Lembro que os álbuns “Clandestino” e “Estacion Esperanza” do Manu Chao me despertaram a saber mais sobre o Mano Negra, mas na época consegui baixar somente uns MP3 aleatórios e algumas poucas informações. Muitos anos depois vem a matéria esclarecedora. Parabéns!

  3. Eu também não conhecia, apesar de tanto ter ouvido falar. E gostei muito do que li, e mais ainda do que vi. =) Muito obrigado pelo excelente texto, vou correr atrás.

  4. Luciano, Cadillacs estão na mira, mas não devem aparecer tão cedo. Mas não serão esquecidos, tenha certeza disso. Marcello e Gustavo, obrigado pelos comentários. O documentário Pura Vida está disponível no Youtube, dividido em 7 partes, com legendas em espanhol. Apesar de não ser a melhor imagem, vale assisti-lo.

  5. Fernando, o Puta’s Fever e o King of Bongo saíram em vinil e cassete, mas estão fora de catálogo. Infelizmente, a discografia só pode ser adquirida por importação. A Argentina teve todo o catálogo do Mano Negra editado por lá, mas agora só se encontra a (insuficiente) coletânea “Lo Mejor Mano Negra” e o DVD “Pura Vida”.

    O DVD vale muito! E os CDs, vale fuçar na Amazon ou na Second Spin.

    1. Fui no show que fizeram em SP, no Vale Anhangabaú, em 1992. Baita show f#d@ !!! Ninguém parado, nenhum minuto. Quem tiver registro (foto, vídeo) compartilhe…

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