por Marcelo Costa
Filme europeu mais badalado de 2013, “Azul é a Cor Mais Quente” (“La Vie d’Adèle, Part 1 & 2”), sexto longa dirigido pelo cineasta franco tunisiano Abdellatif Kechiche, mostra que o sexo – mesmo em tempos de internet, com a pornografia a um toque do mouse – ainda seduz e incomoda o espectador ao ponto de levar um filme apenas bom ao posto de sensação em Cannes e furor por onde quer que passe exibindo o romance de duas belas garotas em cenas brutas e longas, softcore para as massas.
“Azul é a Cor Mais Quente”, inspirado na graphic novel de mesmo nome da autora Julie Maroh (lançada no Brasil pela Martins Fontes), foca na passagem da adolescência para a vida adulta de Adèle (Adèle Exarchopoulos), explorando os primeiros romances e descobertas sexuais da jovem, que, ainda no ensino médio, aos 15 anos, começa a sair com um garoto, mas não se sente completa sexualmente. “Parece que estou fingindo”, confessa para um amigo, antes de terminar o relacionamento.
Fisgada pelo amor à primeira vista ao cruzar com Emma (Léa Seydoux), a garota de cabelo azul, em uma praça, Adèle passa a ter sonhos eróticos com sua paixão, impulsionada ainda por um gesto provocativo de uma amiga de sala de aula, que a beija e desperta nela algo que ela nem sabia que existia. Curiosa, apaixonada e, de certa forma, irresponsável, Adèle se entrega para Emma começando uma história de amor intensa, ainda que natural e comum, que a guiará pela grande parte das três horas e sete minutos de projeção.
Kechiche filma mal, exagerando em closes clichês de lábios e no corpo de Adèle deitada na cama – diversas vezes – criando cenas que desnudam totalmente o personagem e levantam a questão: sem a decantada cena de sexo de sete minutos (longa também na versão em quadrinhos, mas não tanto) e toda nudez filmada com voracidade por Kechiche, “Azul é a Cor Mais Quente” teria toda repercussão que teve? Para que serve uma cena de Adèle nua no chuveiro no trecho final do filme? A sensação é de que se para Maroh, “Azul é a Cor Mais Quente” é “apenas” uma história de amor, para Kechiche, o amor se confunde com sexo.
Uma passagem em particular, a de Adèle sonhando com Emma a masturbando, é emblemática na maneira em que cada um dos autores explora o corpo do personagem, e a questão não é se toda nudez deve ser castigada, mas sim a opção rasa de utilizar nudez e cenas de sexo como mecanismo de manipulação do espectador e promoção através do controverso, artifício gratuito que superestima uma história de amor comum entre duas pessoas, com um começo romântico, um desenvolvimento rotineiro e um término traumático. Quem nunca?
Como subtexto, Kechiche pincela (e provoca) as diferenças da sociedade francesa ao recriar o cotidiano de seus dois personagens centrais (com base em estereótipos): a família culta (de Emma), que tem a casa decorada com quadros, discute a qualidade do vinho e prepara pratos elaborados lida normalmente com o homossexualismo enquanto a família tradicional (de Adèle) se refestela com macarronada enquanto assiste TV durante o jantar e acredita que um bom marido, que coloque dinheiro em casa, seja necessário para que uma mulher realize seus sonhos (como pintar).
Ainda assim, a força de “Azul é a Cor Mais Quente” está na entrega de Adèle Exarchopoulos – mérito de Kechiche, que segundo consta, assediou moralmente as atrizes durante as filmagens para conseguir grandes atuações? – ao personagem, e sua química com Léa Seydoux (Emma), que credenciam o filme, ainda que a obra esteticamente tropece em cenas desnecessariamente longas. No final, temos uma experiência de amor carnal tradicional, mais forte que a razão, que irá marcar as duas pessoas para sempre, mas não sobrevive à traição.
Kechiche fez uma obra cinematograficamente insatisfatória, que diz mais sobre quem vê do que sobre si própria, e neste reflexo se vangloria, mas o cinema pode mais. Superstimado, “Azul é a Cor Mais Quente” se valoriza por duas grandes atrizes e pela delicada observação de que o amor é igual para todo mundo, independente do sexo, ainda que uma parcela enorme da sociedade (ainda) não aceite – e recrimine, mas a vida de Adèle, porém, não se resume a seu primeiro grande amor, ainda que ele seja marcante. Viver é acumular tristezas, cicatrizes e corações partidos. E seguir em frente.
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por Lucas Guarniéri
Quando dois corpos se entrelaçam, como se fosse uma versão doce e suave de uma obra de Schiele, eles assustam. Se forem do mesmo sexo, e ainda por cima enamorados, podem causar repulsa em quem assiste. Afinal, o corpo nu incomoda. Egon Schiele inquietou a sociedade vienense no início do século XX ao optar por, em suas pinturas, representar prostitutas e trabalhadoras da classe baixa, transformando seus corpos em verdadeiras composições eróticas. A relação entre o filme “Azul é a Cor Mais Quente” e o pintor vai além da mera citação presente no filme. O vencedor da premiação máxima de Cannes, a Palma de Ouro, choca ao mostrar a juventude em todos seus aspectos. Sobretudo o sexual.
Contudo, seria raso definir o filme apenas por isso. Apesar de ser um dos principais atrativos para quem procura assisti-lo, o diretor franco-tunisiano Abdellafit Kechiche nos apresenta uma obra cinematográfica quase documental sobre a vida de Adèle (Adèle Exarchopoulos, cujo nome foi emprestado para a sua personagem), que vive um romance existencialista com a estudante de Belas Artes, Emma (Léa Seydoux).
A rotina documentada de Adèle pode parecer desnecessária, mas caminha para fluir com os acontecimentos. Seus hábitos cotidianos como acordar – pegar o ônibus, amarrar os cabelos, comer e confrontar suas amigas – são registros depurados alternando entre closes, que por vezes beiram o invasivo, a fim de causar afinidade entre o telespectador e a personagem, sendo possível conhecê-la detalhadamente ao longo das 3 horas de duração da trama.
O diálogo inicial do filme pode passar despercebido. O professor de literatura indaga aos alunos a seguinte situação: “Quando você esbarra com alguém interessante pela rua e segue caminhando, como se nada tivesse acontecido, seria um ganho ou uma perda diante do encontro/desencontro?”. Adèle descobre a resposta ao virar a esquina, quando avista os cabelos azuis de Emma, e a tensão que permeia o filme nos arrebata pela primeira vez. Dentro dessa relação, as experiências, por vezes, oscilam entre dores emocionais e afetivas. São altos e baixos de uma história que não se define pelo cunho homoerótico, mas pela profundidade de fases como o primeiro amor ou a descoberta do sexo.
O diretor ainda toca em temas como diferenças sociais e culturais, nítidas em cenas como a hora do jantar das famílias de ambas as personagens. Enquanto uma não dispensa uma boa macarronada, que come até se lambuzar, a outra é uma grande apreciadora de vinhos e frutos do mar. Isso reflete em suas filhas: Emma possui uma bagagem cultural a qual inclui filosofia e arte, enquanto Adèle almeja se tornar uma professora do maternal.
Mesmo distante de militar por qualquer coisa, o filme é uma peça importante para a atual situação política francesa, país que passou recentemente por um período de intensas manifestações e debates sobre conceder o direito de se casar e adotar filhos à pessoas do mesmo sexo. É a mensagem outorgada por meio da trama que mostra, com a naturalidade presente nas cenas corriqueiras, os sentimentos que são (ou deveriam ser) universais, e a relação das duas jovens fortifica essa posição. Uma bandeira erguida não pela necessidade de tratamento ou visibilidade diferenciada para os homossexuais, e sim abordagens mais naturais diante dessa questão, mesmo que as atrizes (heterossexuais) não se assumam como porta-vozes da causa.
Embora o epicentro do filme seja a jornada da jovem Adèle pelo autoconhecimento, é impossível se abster ao ato de falar sobre as tão comentadas cenas de sexo. Todo incômodo gerado é justificável, afinal, como falar da descoberta da sexualidade sem sexo? São retratos crus do desejo e a manifestação do corpo feminino que estão inseridos num contexto chocante e nocivo ao ego daqueles que não são capazes de entender o processo genuíno do amadurecimento e do amor desmedido.
Entretanto, seria ingenuidade pensar que cenas beirando o explícito não causariam estardalhaço. Uma das muitas polêmicas envolvendo o longa parte das próprias atrizes, que se sentiram desconfortáveis durante as constantes repetições de tais cenas e pela excessiva carga de trabalho. Destacaram que a obsessão de Kechiche em “projetar a realidade” fazia com que por vezes tivessem a sensação de terem suas intimidades captadas sem perceberem. Chegaram a dizer que jamais trabalhariam com o diretor novamente (retratando a declaração posteriormente). No entanto, apesar da insegurança e cansaço latentes no processo de filmagem, ambas evidenciaram que a cumplicidade entre elas foi crucial para facilitar a tarefa.
Outra polêmica parte da autora francesa dos quadrinhos, que inspirou o roteiro do filme. Julie Maroh diz que a obra audiovisual de Kechiche é um “verdadeiro pornô”, e ainda demonstrou sua insatisfação diante da indiferença do diretor sobre seu desejo de acompanhar as gravações do filme.
Por fim, deve-se retirar todo o espírito experimental presente no romance das duas personagens e permitir-se, abertamente, contemplar o filme da forma como deve ser. Uma obra intimista, sobre a juventude e as descobertas que ela carrega, que independe do sexo ou das classes presentes. Acompanhar o processo de Adèle pelas fases de menina/jovem/mulher em sua jornada individual é uma experiência ampla demais para caber em um ponto de vista limitado.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
– Lucas Guarniéri (@cemcruzeiros) é mineiro, estudante de publicidade e apreciador da boa arte
Leia também:
– Top 24 filmes de 2013 no Brasil, por Marcelo Costa (aqui)
O melhor filme do ano.
Simples assim.
Percebam a diferença de tom e de profundidade da crítica do Pablo Villaça:
(deu 5 estrelas)
http://www.cinemaemcena.com.br/plus/modulos/filme/ver.php?cdfilme=13350.
Não inclui estrelas no meu texto, mas se fosse, fico com três estrelas de cinco.
David, prefiro a opinião de uma mulher, a Manohla Dargis, do New York Times
http://www.nytimes.com/2013/05/24/movies/many-films-still-in-running-at-cannes-for-palme-dor.html?pagewanted=2&_r=0.
Assisti ontem é, apesar de não terem me incomodado, as cenas de sexo me pareceram mal exploradas, beirando a “técnica” de filmes pornôs. 9 canções, por exemplo, é infinitamente mais explícito mas ainda assim mais belo que Azul. Acho que o filme poderia ter sido melhor se não tivesse sido filmado por um menino de 12 anos.
Concordo com a opinião do Marcelo. É um filme deveras comum e além das cenas de sexo destoarem em tom na narrativa, não consegui justificar a duração delas além de polemizar e atrair foco no filme.
Ué, meu comentário foi editado e colocado o link?
Sim, David.
Tanto o seu comentário quanto o da Eduarda, mas não houve edição no que vocês escreveram como opinião de vocês, apenas crédito com link para quem é de direito pelos textos que vocês citaram.
Do mesmo jeito que prefiro que as pessoas venham ler textos do Scream & Yell no Scream & Yell, gosto de valorizar o clique dos textos externos (até para que outros leitores conheçam outros sites).
Gostei tanto que já vi três vezes no cinema. É amor de verdade
Mesmo com 3 horas de duração só eu que achei que passou tão rápido?! Me senti parte do filme com tais closes bastante presentes e diálogos tão corriqueiros ao mesmo tempo que ricos.
É claro que se fossem retiradas as cenas de sexo do filme o resultado seria outro. Mas não porque elas configuram uma “atração a parte”, mas sim porque elas são muitos importantes para dar sentido à obra. Afinal, tais cenas evidenciam que um relacionamento amoroso também é marcado pelo carnal, pela intensidade sexual. Aquele encontro entre as duas no restaurante, mais para o final, outro dos grandes momentos de “Azul é a cor mais quente”, é uma extensão bem emblemática da tensão erótica entre elas e de como isso era um componente forte da relação. Se fossemos fazer o comparativo, seria semelhante essa relação entre as cenas de sexo e o filme com aquela entre “O último tango em Paris” e suas respectivas cenas de sexo: o filme de Bertolucci teria a mesma força e sentido sem aquelas trepadas desesperadas entre o Marlon Brando e a Maria Scheneider?? Acredito que não… Ainda sobre outro ponto que discordo da opinião do Marcelo: não acho que o Kechine filma mal. Muito pelo contrário: o senso de composição de cena do cara é fenomenal. No mais, na minha modesta opinião, é o melhor filme de 2013, e isso num ano que foi acima da média em termos de excelentes produções que apareceram em nossos cinemas. P.S.: e o filme tem um mérito que é raro – é muito superior à obra original (a HQ) na qual se baseou.
@André Kleinert, Concordo com você.
Li alguns comentários sobre as cenas de sexo serem exageradas. Mas se for pensar direito, elas fazem todo o sentido nessa sequência do restaurante 3 anos depois. Ali fica claro o quanto a Adele ama a Emma. Eu acho que se as cenas de sexo fossem filmadas de outro modo, o público não compraria a ideia desse “amor maior do mundo” que a Adele sente.
Sem contar que serve para mostrar a diferença entre aquela transa esquisita que ela tem com o carinha no começo do filme.
Eu acho que as sequências em que elas brigam e terminam, juntamente com a cena do restaurante são as duas melhores cenas que o cinema fez em 2013.
E concordo com você: foi o melhor filme desse ano.
Não ví motivo de polêmica das cenas de sexo e nem da nudez, que o primeiro critico fez. O diretor retratou em tempo e em duração no cotidiano dela, da mesma forma que as cenas duraram na escolhinha das crianças. O melhor filme do ano!
Acabei de ver o filme e fiquei surpreso com a comoção de vocês diante de um personagem tão frustante. O filme devia se chamar A Vida da Sonsa. Só vocês para idolatrar uma mulher que perde três anos da vida apaixonada por outra que não liga mais para ela. Como brincou uma amiga que viu a sessão comigo, isso que ela sente é doença, amor é outra coisa.
Chegar ao fim do filme preso às duas cenas é sinal de que seu conteúdo não foi compreendido.
Acho que uso do termo “homossexualismo” não é razoável.