Certamente a pior capa desde “Dylan and the Dead”, o novo álbum de Bob Dylan denuncia algum cansaço numa carreira que desde 1997 dava mostras de um vigor espectral. Do renascimento em “Time Out of Mind”, passando por “Love and Theft”, “Modern Times” até “Together Through Life”, este é um de seus períodos mais inspirados. “Tempest” não deve ser ignorado como a tenebrosa reunião com o Grateful Dead, mas defendê-lo como um dos melhores discos de Dylan seria mais um elogio ao mito do que a estas canções.
Comecemos pelo fim. “Roll Over John” é uma homenagem a Lennon, decepcionante em vista dos 32 anos passados após sua morte. Há espertezas, como dar outro sentido ao verso cantado de forma mais triste por um beatle: “I read the news today, oh boy”. Ou resgatar a linha “come together right now over me”. Mas nem a tentativa de transformar John no tigre de Blake (“Tyger! Tyger! Burning bright/in the forests of the night”) consegue fazer a canção decolar.
“Duquenesque Whistle”, parceria com Robert Hunter que abre o disco, quebra uma breve sequência de opening songs empolgantes: “Thunder on the Mountain” e “Beyond Here Lies Nothing”. O início descontraído lembra o conjunto de “Love and Theft”, com um clipe surpreendente dirigido por Nash Edgerton. “Soon After Midnight”, com suas imagens de violência, é mais promissora, remete aos clássicos da Sun Records. Mesmo a aproximação do fim não exclui a urgência do contato humano, a voz de Dylan soando inesperadamente doce quando canta: “It’s now or never, more than ever. When I meet you, I didn’t think you would do, it’s after midnight, and I don’t want nobody but you”. “Narrow way”, um blues de rara energia aqui, é um dos grandes momentos de “Tempest”, a melhor letra do álbum.
“Long and wasted years” desde já entra para o cânone das canções de amor dylanescas. Composta por dois riffs simples que se repetem até o final, seu tom é distanciado: “It’s been such a long, long time, since we loved each other and our hearts were, one time, for one brief day, I was the man for you”. A dor cálida e a fúria de “Blood On The Tracks” são substituídas por uma meditação suave e jocosa (com direito à citação de “Twist and Shout”), que no entanto não abdica de um sentimento profundo de perda. Repare na autoridade com que Dylan enfatiza os versos “I think that when my back was turned, the whole world behind me burned”.
O urro inicial de “Pay in Blood” poderia fazer alguém mais desavisado pensar que o vocalista é um metaleiro com o pé na cova. O que se ouve a seguir é diferente: a narração raivosa com um balanço inesperado nos versos imediatamente anteriores ao refrão. Se essa voz destruída já não oferece novidades em relação aos álbuns anteriores, agora a pronúncia parece perturbar ainda mais o sentido do canto. A nota curiosa está na dúvida dos fãs: Dylan canta mesmo “You got the same ass as your mother does”? Ou seriam olhos?
A partir de “Scarlet Town”, o álbum começa a afundar em falta de inspiração: de repente estamos numa cidade perdida no tempo, em que “the streets have names that you can’t pronounce” e onde “help comes, but it comes too late”. Uma canção que pode crescer nas apresentações ao vivo (caso entre no repertório, o que parece improvável), mas que ao mesmo tempo se arrasta por um imaginário tradicional, sem oferecer versos marcantes. “Early Roman Kings” surge com mais vivacidade, resgatando um riff de Muddy Watters e fazendo com que lamentemos o pouco espaço concedido ao acordeão de David Hidalgo. “Tin Angel” conta a história de um assassinato triplo (sem a garantia de que o ouvinte aguente ouvi-la até o final: a confiança na falta de um clímax musical e na mera narração fracassa de um modo incomum em suas canções mais recentes).
Dylan está satisfeito em criar canções semelhantes às que ouvia no rádio (blues, rockabilly, country, rock & roll dos 50’s pra trás). Parte do prazer em ouvir um novo disco de Bob Dylan está em saber que é uma viagem pela história da música americana, enquanto outra parte vem da expectativa do modo como ele vai dizer as coisas que diz (uma vez que já sabemos o que ele pensa sobre morte, dignidade, amor). A primeira parte é cumprida aqui de forma pouco imaginativa, até mesmo preguiçosa, ao passo que a segunda decepciona.
A faixa-título, com seus catorze minutos de duração, não chega a oferecer um desfile tão desafiador quanto o de “Desolation Row”. Leonardo DiCaprio se junta a Alicia Keys como um dos personagens mais inesperados em suas composições. Estamos distantes da mágica do Próspero shakespeariano que diz “this thing of darkness I acknowledge mine”. O cansado narrador conclui que não se pode compreender o julgamento da mão de Deus. Às vezes também não se pode compreender o julgamento musical de Bob Dylan, basta ver a quantidade de joias espalhadas por seus bootlegs.
Talvez as melhores canções de “Tempest” só apareçam daqui alguns anos. Talvez seja a hora de trocar Jack Frost por Daniel Lanois. Talvez seja a hora de recolher os destroços do naufrágio e começar de novo. Talvez seja exigir demais de um artista que se transformou mais do que qualquer outro artista popular em sua época. Talvez esta tempestade seja como aquela bíblica, a exigir uma prova de fé dos discípulos nos poderes do Criador. Talvez este não seja um final anticlimático para uma carreira tão pródiga em renascimentos.
– Gabriel Innocentini (siga @eduardomarciano) é jornalista e já escreveu para o Scream & Yell sobre Tom Waits (aqui), Thomas Pynchon (aqui), Charles Bukowski (aqui) e Jennifer Egan (aqui)
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Para mim, o melhor disco do Dylan desde Time Out of Mind, e olha que os que o seguiram são todos excelentes. Tempest é provavelmente o melhor disco do ano e um dos melhores do Dylan. Se eu não fosse tão fã do Time Out, diria que Tempest é o melhor disco dele desde Desire. Só uma coisa, Gabriel, você sabe que Jack Frost é o pseudônimo que o Dylan utiliza para não colocar o próprio nome como produtor dos discos e não uma pessoa, certo? Mas concordo que Dylan e Daniel Lanois é uma parceria que gostaria de ouvir sempre.
“Tempest” pode não ser um “Time Out of Mind” (acho o “Love and Theft” e o “Modern Times” ainda melhores), mas está no mesmo nível do “Together Through Life”. Não o vejo, de forma nenhuma, com cansaço criativo, como parece sugerir a resenha.