Wrecking Ball, Bruce Springsteen

por Marcelo Costa

Grande parte da música pop é fuga da realidade. Quase sempre foi – com exceção de alguns sopapos punks e alguns rocks raivosos. O mundo atual pouco se diferencia do período das discotecas, ali no meio dos anos 70, em que a regra era dançar enquanto a poeira da Guerra do Vietnã abaixava e boa parte dos governos latino-americanos era comandada por militares; ou então ficar chapado e deslocar-se para um universo paralelo em que os solos de guitarra pareciam ter horas e as músicas soavam como sinfonias (enquanto alguém decidia o rumo das coisas). Escapismo.

Num âmbito geral, este planetinha azul está em frangalhos (apesar de você, brasileiro nato, parecer um tanto assustado com a ideia do prato/bolso cheio), mas o garoto vai, liga sua guitarra e manda uma foda-se, sonha com campos, vales e paixões enquanto as cidades são tomadas por todo tipo de pessoa inescrupulosa – a apatia que Kurt Cobain flagrava em “Smells Like a Teen Spirit” chegou ao seu clímax. A vigarice hoje em dia se veste de terno e gravata a paramentos litúrgicos, fardas e tudo mais, mas pra que se importar com isso, não é mesmo? Vamos fugir?

Bruce Springsteen não consegue não se importar nem fugir e continua atuando como um cronista do mundo moderno. Seus discos são retratos de época que daqui a 50 anos vão resumir para um moleque a verdadeira história norte-americana. “Wrecking Ball”, seu 17º álbum, é o registro de uma sociedade corrompida pelo dinheiro, e Bruce inspira-se nos eventos da crise financeira para lançar seu melhor disco desde “The Rising”, que retratava os EUA pós 09/11. O demônio tem várias caras e pode ser um político tanto quanto um terrorista ou um economista. A lista só aumenta.

“We Take Care of Our Own”, o primeiro single, é uma “Born In The USA” acelerada em que Bruce acusa o governo de não ajudar as pessoas, de cuidar apenas do que é deles (uma crítica feroz ao “american way of life”, que proclamou o capitalismo com uma religião que não perdoa os fracos). Bruce toca guitarra, banjo, piano, teclado, percussão e bateria eletrônica enquanto uma seção de cordas (de oito violinos, três violas e dois violoncelos) faz a melodia grudar na memória (e ecoar em estádios) e o produtor Ron Aniello assume baixo, bateria e algumas guitarras. É só o primeiro single.

Um coral soul surge em “Easy Money” para levar aos céus o personagem, que, como um pirata pronto para saquear, “está indo para a cidade em busca de dinheiro fácil”. Bruce sente falta de um tempo em que o trabalho honrava o homem. Em “Shackled and Drawn” (da frase “Liberdade é uma camisa suja”), Bruce se entrega ao soul (que ecoa em todo o álbum) e cita “Street Fight Man”, clássico dos Stones (lá o garoto tocava rock and roll na falta do que fazer; aqui ele está algemado e indeciso) numa canção que empresta versos e melodia (devidamente creditados) de “Me And My Baby Got Our Own Thing Going”, parceria de James Brown com Lyn Collins, sucesso em 1972.

A melancólica “Jack of All Trades” traz Tom Morello na guitarra solo, uma seção de sopros extremamente lírica e uma letra que diz que os banqueiros fazem o que sempre fizeram (engordar), e ameaça: “Se eu tivesse uma arma, eu iria atrás dos bastardos…”. Na emblemática marcha celta “Death to My Hometown”, com riff de flauta, ele diz que a derrocada de seu povo não se deve à uma guerra, mas à ganância de alguns homens: “Nenhuma bomba caiu do céu. Foram os ladrões gananciosos que trouxeram a morte para a minha cidade natal”.

A baladaça “This Depression” traz novamente Tom Morello, agora na guitarra climática, enquanto a faixa título e “Land of Hope and Dreams” trazem o velho parceiro Clarence Clemons no sax – a segunda é aberta com o coral Victorious Gospel Choir cantando “People Get Ready”, de Curtis Mayfield, e apesar de Bruce tê-la composto nos final dos anos 90 (chegando a apresenta-la em concertos da época), a canção só foi gravada em 2011, após a morte de Clarence, e Ron Aniello trabalhou em takes antigos que o saxofonista havia feito para a música.

“You’ve Got It” e “Rocky Ground” surpreendem pela simplicidade do arranjo (a primeira ainda destaca uma letra bonita enquanto a segunda traz o coral Victorious Gospel Choir, a cantora Michelle Moore num breve rap e um trecho de uma antiga declamação de Alan Lomax, que também aparece em “Death to My Hometown”), e ratificam a aura soul que permeia todas as canções do álbum (e se estendem de forma surpreendente nos shows da turnê), e praticamente deram nova vida à Springsteen após os bons – mas ainda assim inferiores – “The Magic”, de 1997, e principalmente “Working on a Dream”, de 2009.

A sensação é de que Bruce não desperdiça um segundo de sulco em “Wrecking Ball” – a canção mais fraca da safra, “Swallowed Up (In the Belly of the Whale)”, só aparece na edição especial do álbum, ao lado do hino irlandês “American Land” – em um álbum crítico e absolutamente perfeito, que fecha com Bruce cantando “We Are Alive” na última faixa. Bruce parece querer chacoalhar o ouvinte. Ele aponta o dedo para o demônio, lamenta não ter uma arma, mas não desiste em meio ao cenário de caos. O recado parece claro: “Se precisar começar tudo de novo, vamos começar. Mas tome cuidado com esses filhadaputas gananciosos”. A lista da filhadaputagem só aumenta, e você até pode fugir da realidade, mas uma hora ou outra você terá que enfrenta-la. Neste momento ela tem uma trilha sonora: “Wrecking Ball”. Um grande disco. Um retrato do lado podre das pessoas em arranjos suntuosos. Esta na hora de acordar.

Leia também:
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– Bruce Springsteen: bom humor e inteligência, por Marcelo Costa (aqui)
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6 thoughts on “Wrecking Ball, Bruce Springsteen

  1. Parabéns,Marcelo! Bela crítica! Nem acredito que daqui alguns dias vou assisti-lo ao vivo e a cores, rs. Abraços.

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