Madureira 0 x 1 Bangu
Sob O CEL #14
por Carlos Eduardo Lima
Quis o destino deste mundo de frilas jornalísticos que eu, Carlos Eduardo Lima, estivesse presente ao prélio disputado entre Madureira e Bangu, no sábado, dia 17/03/12. Sendo assim, leitor, peço licença para adentrar as quatro linhas do campo de futebol e deixar a nossa tão cara música pop de lado desta vez. Esse é um texto sobre o esporte bretão e tudo que ele pode representar na vida das pessoas.
Antes de mais nada é preciso dizer que a maioria das pessoas fora do Rio de Janeiro não conhece Bangu ou Madureira. São dois bairros da topografia suburbana carioca, na fronteira entre as Zonas Norte e Oeste da cidade. Há cinco estações de trem separando as duas localidades e uma grande rivalidade entre os dois times. No Campeonato Carioca de 2012, o Bangu está fazendo contas, tentando evitar a queda para a segunda divisão. O Madureira está um pouco melhor, mas também corre riscos sérios de cair. O jogo era uma batalha por vir, um épico no qual as vidas das pessoas – jogadores e torcedores – seriam colocadas à prova.
Quando cheguei ao tradicionalíssimo Estádio Aniceto Moscoso, popularmente conhecido como Conselheiro Galvão, por causa da rua em que se encontra, no bairro de Madureira, pude lembrar de um texto longínquo de minha infância, no qual Luiz Fernando Veríssimo falava sobre um jogo em um estádio pequeno do interior, no qual um torcedor insistente chamava um jogador desatento ao jogo. Veríssimo dizia no primeiro parágrafo que o mal dos grandes estádios era a impossibilidade de sentir o cheiro da grama.
Pois bem, em Conselheiro Galvão é possível sentir o cheiro da grama e observar vários outros detalhes. Não há refletores, logo, não há jogo noturno. A tribuna é o único lugar com cobertura. A torcida adversária fica ao ar livre, o que pode ser especialmente cruel, dependendo das condições climáticas. Neste sábado de fim de verão, o Sol deu uma trégua e uma providencial cobertura de nuvens concedeu algum conforto à torcida do Bangu. Aliás, o placar do jogo, já entregue no título desse texto, é o menos importante. Há muito mais pra falar.
O que mais nos irrita no noticiário do futebol é, aposto, a exorbitância dos salários pagos aos jogadores. A mim, pelo menos, incomoda bastante ver que esses sujeitos ganham tanta grana para jogar bola. Eu sou a favor de algum tipo de regulamentação ou estabelecimento de patamares para os vencimentos do atleta, mas percebi em Madureira que isso é praticamente impossível de ser conseguido. Como se fossem dois clãs medievais, as torcidas, os bairros, as cores, tudo personificado pelos onze jogadores uniformizados no gramado, se enfrentaram pela sobrevivência. Se em tempos imemoriais, sobrevivência queria dizer, ao pé da letra, ganhar mais um dia de vida, hoje, talvez signifique um pouco de felicidade e auto estima para quem vai ao estádio.
É legal tirar um sarro da torcida adversária, colocar pra fora toda aquela bestialidade humana que está e sempre estará em nós, sufocada por adereços, perfumes e leis. O ser humano é um bicho mau e guerreiro, muito mais que racional. O nosso negócio é impingir sofrimento e dor ao nosso adversário, é a nossa natureza, contra a qual é impossível lutar. Percebi isso ao ver uma torcida organizada do Bangu adentrar o estádio, escoltada pela polícia. Sim, uma torcida encrenqueira, com pinta de facção de baile funk, entrou em Conselheiro Galvão, bem no centro do coração de Madureira, gritando palavras de ordem e mandando desaforos para a torcida local. Isso, portanto, não é privilégio de times de grande popularidade. É do futebol, é humano, é da opção pelas cores, pelos deuses, pela alteridade. Não deviam ser mais de 40 pessoas, todos homens, jovens, gritando palavras de ordem.
A remuneração exorbitante paga aos atletas de futebol (e de alguns outros esportes) é o que o mundo neoliberal pode oferecer como reconhecimento ao herói. Há algum tempo, não muito, o herói do esporte era pago com admiração, reconhecimento, identificação com o clube que defende e um número na camisa de moleques num campinho qualquer. Essas benesses não podem ser medidas em cifrões e, num mundo como o nosso, estão, digamos, fora de moda. O que se pode fazer de melhor pelo herói do futebol hoje é pagar-lhe bem e conceder-lhe riqueza material. Desse jeito, jovens de todo o mundo entram em campos mais ou menos importantes que o estádio do Madureira todos os dias, em busca de fortuna e remuneração. Todos, de alguma forma, são candidatos ao heroísmo. Aqueles 22 sujeitos em campo têm potencial para heróis, alguns são jovens e hábeis, podem atingir o status de representantes das cores da torcida e, mais tarde, num desapego que não deveria ser comum aos heróis, bandear-se para outro clã, vestir outras cores.
O que eu posso dizer é que, naqueles 90 minutos, ninguém estava pensando nisso. Estavam dando o coração em campo, lutando por uma causa nobre, mas que também é de empresários de subúrbio, de índole duvidosa, pensando no lucro da cota de televisionamento, fatores estranhos ao herói. Eles estavam, sim, vestindo capas e cintos de utilidades uns contra os outros, procurando colocar a bola na rede e sair logo dali, rumo a um fim de dia mais tranquilo, com possibilidade de permanência no campeonato. Havia jogadores veteranos e jovens em campo. Os salários, mesmo abaixo do padrão irreal do futebol de grande investimento, deviam ser bem desiguais entre os 22 jogadores.
Os jovens promissores, os veteranos com rodagem internacional, o pobre, o classe média, o que fala bem e o que fala mal, todos eles estavam unidos naquela arena. Todos eram, sim, iguais. Os torcedores, por sua vez, também experimentavam a equidade, mesmo os que estavam a céu aberto. E o placar favorável ao visitante só fez diminuir o calvário de não ter um telhado protetor sobre as cabeças. Mais tarde, ao fim do jogo, as pessoas de vermelho e branco rumaram para a estação de trem, tentando voltar para casa, felizes ao som de cantos de guerra. O pessoal de azul, vermelho e amarelo, apesar da proximidade de seus lares, saiu em silêncio, reconhecendo o ocorrido, pensando em maneiras de enfrentar o resto do dia e o domingo sem muita perspectiva.
Sei muito bem que o motivo para times com pouco investimento estarem em campo é, justamente, conseguir investimento. O futebol deixou de ser atividade acessória para assumir o status de principal há um bom tempo. É ingênuo quem pensa que o contrário pode vir a acontecer e o objetivo a ser alcançado é ganhar grana para pagar jogadores, funcionários, girar a economia interna. Do contrário, o que seria de Bangu e Madureira, dividindo os 3.960,00 reais de renda, pagos pelos 392 torcedores presentes ao estádio? Como poderiam continuar existindo?
O que eu concluí dessa experiência futebolística tão especial? Antes de tudo, que o neoliberalismo não matou o espírito verdadeiro do futebol, apesar de fazer quase todo mundo pensar que o esporte é somente uma partida de Fifa 2012, jogada num Playstation da sala com ar condicionado, livre do contato com cheiros, gostos e sensações reais. Todo mundo que gosta de futebol irá presenciar, mais cedo ou mais tarde, algo como o que eu vi no sábado e vai ficar impressionado. Eu nunca fui muito ao estádio, sempre vi jogos na televisão, mas tenho memórias nítidas de partidas disputadas no Maracanã e sei o que isso significa. Naquele sábado, dia 17 de março, o futebol reassumiu sua dimensão de evento cotidiano, sem pompa mas com circunstância, com dramas pessoais, gente de carne e osso vivendo eventos da vida real. Nada pode ser melhor do que isso. É uma pequena revolução.
Curiosamente, havia pouco dinheiro na bilheteria e nenhuma emissora de televisão ou veículo jornalístico cobrindo o prélio e isso me trouxe a última lembrança naquela tarde, ao pensar no cantor, compositor e poeta americano Gil Scott-Heron, em sua canção mais conhecida, dizendo que, não importa o quanto de grana e mídia existe no mundo, a revolução não será televisionada.
Sintomático, não?
CEL é Carlos Eduardo Lima (siga @celeolimite), historiador, jornalista e fã de música. Conhece Marcelo Costa por carta desde o fim dos anos 90, quando o Scream & Yell era um fanzine escrito por ele e amigos, lá em sua natal Taubaté. Já escreveu no S&Y por um bom tempo, em idas e vindas. Hoje tem certeza de que o mundo como o conhecíamos acabou lá por volta de 1994/95 mas não está conformado com isso.
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Leia também:
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– Especial Scream & Yell Copa do Mundo de 2002, por Juliano Costa e Martin Fernandez (aqui)
– Especial Scream & Yell Copa do Mundo de 2006, por Juliano Costa e Martin Fernandez (aqui)
Excelentes texto e análise. Podemos lembrar que a imensa maioria dos times/jogadores pertencem à classe dos “sem investimento”. Aos que estão em SP, vale muito a pena ver um jogo do Juventus na Mooca e “sentir o cheiro da grama”.
Madureira x Bangu está para Real Madri x Barcelona assim como o circo de subúrbio está para o de Soleil.
Em um vc sente o cheiro da grama – no caso do circo de terra – e no outro da grana.
Não acho que com o ar infestado de grana a genuína magia sucumba totalmente.
– O dinheiro não tem esse poder –
E nem acho que com o mesmo ar dessa vez infestado de grama a mesma magia seja mais pura.
É mais uma questão de gosto. Eu, por exemplo, prefiro ver um Real x Barcelona, mas pelo outro lado prefiro o circo de subúrbio.
Acho que vc deu uma romantizada, Cel.
Sendo bem realista, não há dinheiro que suplante as emoções.
PS: Já me incomodou o fato de jogadores ganharem MUITO. Hoje em dia não mais. Ganham muito mais em cima deles e eles são os artistas principais.
Essa semana foi divulgado o salário do Messi. $$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$
Individualmente é um mundo de dinheiro, claro. Mas o que ganham com ele é 100 vezes mais. Sendo assim…
E tem aquela história., né? Se pagam é porque estão tendo lucro.
Zé Henrique, ainda bem que sempre discordamos. O dinheiro tem o poder de fazer praticamente tudo num mundo em que ele – o dinheiro – é a meta a ser alcançada. Isso transforma todas as coisas de um jeito tão profundo e definitivo que fica difícil começar a expor fatos. Só pra ilustrar e usando o futebol: os times pequenos do Rio não têm direito de mandar os jogos contra times grandes em seus estádios. Há algum tempo, times como Flamengo e Fluminense ia ralar na boquinha da garrafa em estádios como Rua Bariri, Italo Del Cima, Eduardo Guinle, onde o bicho pegava. Hoje, por conta apenas do lucro, só há jogos em estádios “maiores”, como o Engenhão e o Moacirzão, em Macaé ou ainda no Estádio da Cidadania, em Volta Redonda, porque esses times tiveram grana da prefeitura para investir. Os times do municipio do Rio, entre eles, Bangu e Madureira, se dão mal e mandam em casa apenas jogos contra outros “pequenos”. Justo, né?
Ahh, Cel, nessas coisinhas menores – e tb nas maiores – na mesquinhez, na visão só do lucro o dinheiro é um deus soberano. Todos sabemos.
Eu sou torcedor do Santa Cruz daqui de Recife e sei bem como são tratados os clubes do nordeste em detrimento dos do sul maravilha. O sonho dos cartolas do eixo Rio – SP é fazer uma primeira divisão só com clubes de Minas pra baixo. Um dia, infelizmente, eles vão conseguir.
Falei na questão das emoções. Centrando foco nas emoções mais magnânimes dos seres humanos. Nessa questão específica o dinheiro dança. Perde o valor.
E não estou romantizando. Estou sendo realista. Baseado em fatos reais.
PS: Nesse post particulamente quem diz ainda bem por discordar de vc sou eu. 🙂
As emoções, infelizmente, ficam em segundo plano.
As emoções ficam em segundo plano para os que, mesmo cobertos de dinheiro, mal vivem. Me lembrei da reportagem da Piauí sobre o Ricardo Texeira. Vc leu?
Que triste figura – em todos os sentidos.
Na verdade não discordamos nesse post – focamos coisas distintas.
Eu foquei o lado que pra mim faz a vida valer a pena. Caso contrário, viramos todos Ricardos Texeiras.
Esses canalhas na verdade são dignos de pena. Mesmo ganhando eles perdem.
Esse modelo tá podre. Vai cair.
Excelente texto CEL. Eu já assisti jogos épicos lá em Conselheiro. Teve um Madureira e América-RJ que só faltou tiro. Para um futebol onde o dinheiro se tornou a razão de tudo, ver a vida real, feita de pessoas que também querem sua fatia, mas que precisam caminhar muito ainda, é um alívio pra nós, reles mortais.
Belo texto, só não concordo com a regulamentação dos salários dos jogadores, estamos em um pais capitalista, sei que existem varias distorções na sociedade com professores, médicos e policiais ganhando mal, mas isso não e problema do neguinho pobre que saiu lá do misere, o que tem que ser regulamentado nesse pais e o Salário dos políticos, uma maior distribuição de renda, já que todos cantam aos quatro ventos que somos a sexta economia etc. e tal, fora isso seu texto foi perfeito.
Paulo, certo, o problema não é do jogador, é do mundo capitalista neoliberal.
Muito boa a sua crônica sobre o clássico Madureira x Bangu. Concordo em tudo. Aliás, também escrevi uma crônica – bem mais modesta – a respeito do mesmo jogo (um dos mais importantes da história do clube alvirrubro):
https://www.bangu.net/informacao/noticias/jogos/2012/20120317_cm.php