Texto por Bruno Capelas
Fotos por Edu Guimarães
No palco do teatro do Sesc Belenzinho, um homem idoso (ou de melhor idade, como dizem os politicamente corretos) usando uma bata dourada e uma calça cinza toca um piano de cauda. À sua volta, pétalas de flores estão jogadas pelo chão, e atrás de si um telão exibe sua imagem ao vivo, contraposta a pinturas de cores fortes e formas simples, de grande intensidade. Esse homem chama-se Arnaldo Dias Baptista, e é quase um milagre que ele esteja vivo, em cima de um palco, sendo capaz de executar suas canções. Quando se considera que esta apresentação é a primeira que o cantor faz em pelo menos cinco anos é natural entender porque a noite de 8 de outubro de 2011 ganha ares de celebração quase única.
Ao abrirem-se as cortinas, após ser apresentado como um homem em defesa da eletricidade limpa – intenção confessa em “I Don’t Care”, música que deve estar em seu novo disco, “Esphera” – e dos amplificadores valvulados, Arnaldo aparece sentado em um banco, à frente do piano, sorrindo como um menino travesso para a plateia. Esse sorriso continuará em seu rosto durante toda a apresentação, especialmente quando é aplaudido por mais uma de suas traquinagens à frente do instrumento. Elas não são poucas, diga-se de passagem: o estilo de Arnaldo ao tocar é vigoroso, forte, explorando intensamente tanto as teclas mais agudas quanto as mais graves. Em alguns momentos do show, a emoção que ele transmite a seu instrumento é tão visceral que é possível perceber até algumas notas a mais (que, entretanto, nunca soam fora de lugar).
Ao contrário do que é costume, o show não tem um repertório definido previamente. Aliás, talvez seja melhor dizer que o que se viu no Sesc Belenzinho nem chega exatamente a ser um show, assemelhando-se muito mais a um sarau. É fácil perceber que Arnaldo toca o que lhe dá na telha, como num fluxo de consciência ou numa inspiração momentânea, gerando agradáveis surpresas em boa parte da apresentação. Parece até normal que Arnaldo cante Bob Dylan (“Blowin’ in the Wind”) e Elton John (“Rocket Man”, num dos pontos altos da noite, e a quase irreconhecível “Skyline Pigeon”), influências confessas em seu trabalho. Mas o que dizer quando os dois veteranos do rock se unem a Bach, antigos boleros (“Perfidia”) e standards do jazz (“Stella by Starlight”, já gravada por Frank Sinatra e Miles Davis)? Entretanto, ao mesmo tempo, tal liberdade também dá espaço para alguns momentos meio perdidos, desconexos do todo, como quando Baptista cede a algum improviso qualquer e gratuito no piano.
Porém, quando o compositor mostra suas próprias canções, a apresentação ganha contornos marcantes. Ao tocar “Ando Meio Desligado” e “Desculpe Baby”, a sensação que fica é como se aquelas músicas estivessem sendo nos apresentadas pela primeira vez – isso pra não dizer nada sobre o hino “Balada do Louco”, que por muito tempo foi o símbolo maior da figura de Arnaldo. As canções de “Singin’ Alone”, de 1982, gravado pouco antes do trágico acidente que aconteceu com o cantor – que caiu do 3º andar do Hospital do Servidor Público, em São Paulo, em uma frustrada tentativa de fuga/suicídio (não se sabe até hoje) – também exalam seu charme. Especialmente aquelas que têm um pé no nonsense ou em uma inocência maliciosa, como “Corta Jaca”, “Sitting on the Road Side” e uma versão em português de “Train”.
Mas nada é capaz de superar o arrepio que surge na espinha quando Arnaldo se dedica especificamente ao repertório do álbum “Loki”, de 1974. 37 anos depois, é de se admirar que Arnaldo não tenha ficado totalmente lóki ou virado bolor. A pergunta de “Será Que Eu Vou Virar Bolor?” soa quase como um desafio petulante, enquanto o apelo pungente de “Te Amo Podes Crer” despedaça qualquer coração balançado na plateia enquanto a malandra “Cê Tá Pensando Que Eu Sou Lóki?” – apresentada duas vezes: no início do espetáculo e no bis – despista os incautos que achavam que Arnaldo já não era mais aquele. A reação da plateia é óbvia: o teatro quase vem abaixo com essas canções, e o artista só não faz infinitos bis porque a produção não deixa – pedidos não faltaram.
É difícil até saber o que pensar exatamente sobre essa apresentação. Só por suas circunstâncias, ela já seria diferenciada. O fato de ser Arnaldo Dias Baptista quem se coloca sob as luzes da ribalta intensifica isso ainda mais: a história desse menino levado da Pompeia soa improvável demais para ser verdade. (Para quem ainda não viu, vale a pena assistir ao documentário “Lóki”, de Paulo Henrique Fontenelle, que conta bem essa trajetória). Vê-lo em cena é vivenciar um artista se reencontrando com sua arte, como uma criança que vê um brinquedo pela primeira vez e não quer deixá-lo de lado. Trata-se de uma dádiva da sobrevivência, algo que merece ser contado para filhos e netos. Como se vivesse a letra de uma de suas canções, Arnaldo passou todos esses anos nem aí para a morte e conseguiu, como queria, decolar toda manhã.
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– Bruno Capelas é estudante de jornalismo e assina o blog Pergunte ao Pop
– Edu Guimarães e fotojornalista. Veja mais fotos do show de Arnaldo Baptista aqui
Leia também:
– “Loki” é daqueles filmes que deveriam ficar semanas e semanas em cartaz, por Mac (aqui)
– Cenas da Vida em São Paulo – O encontro, por Marcelo Costa (aqui)
– “Loki”, o disco, é o maior tratado existencial do rock brasileiro, por Fernando Naporano (aqui)
Eu estava lá nesse momento histórico da volta do Arnaldo. Escrevi uma pequena resenha: Arnaldo Baptista
Sábado: 08/10/2011 – Sesc Belenzinho (São Paulo)
Repetindo um show só com voz e piano, como não fazia desde 1981, quando se apresentou assim no TUCA, Arnaldo Baptista tocou para uma casa lotada ( os ingressos se esgotaram para as duas datas do sesc, 8 e 9, no mesmo dia) interpretando canções de sua carreira solo, dos Mutantes e diversos covers e números instrumentais, desde música clássica de Bach ao tema do desenho Pica-Pau, que gravou no LP ( como o Loki gosta de dizer) Let it Bed. Ao fundo, um telão com projeções de suas pinturas trabalhadas com efeitos psicodélicos completavam o clima viajandão. `C tá pensando que eu sou Loki´, ´Será que eu vou virar bolor?´, ´Balada do Louco ´, ´Raio de Sol´, ´Jesus, Come back to Earth´, foram intercaladas entre covers de Elton John ( ´Rocket Man´, ´Skiline Pigeon´) e Bob Dylan (´Blowin´in the Wind´). Arnaldo está tocando piano cada vez melhor, é emocionante ver sua recuperação e imaginar o que esse gênio ainda pode aprontar por aí.
Gostaria tbm de acrescentar, que além da honra de assistir um show desse artista espetacular o querido Arnaldo recebeu uns poucos fãs após o show, trocou abraços e fotos todos juntos reunidos numa pessoa só. 🙂 Que humildade!
Na verdade a música “Train”, do Singing Alone é uma versão para o inglês da música ” Trem”, gravado no disco Elo Perdido, de Arnaldo & Patrulha do Espaço.
Exato. Apesar de ter sido gravada em 1977, as sessões com a Patrulha do Espaço só ganharam lançamento em 1988, via Baratos Afins (que também lançou o Singin Alone), quase que a oficialização de um bootleg.
Sou grande fã do Arnaldo dos Mutantes. Pra mim, e para a torcida do Flamengo, a alma da banda. Agora, nunca vi nada demais nesse aclamado disco Lóki. Pra mim o último cd do Otto, pra ficar na mesma temática, é bem melhor.
Tenho o documentário Lóki e de fato é bom demais.
O que mais gosto do Arnaldo são suas sacadas profundas ditas de forma bem peculiar.
PS; Engraçado que no texto as palavras fuga e suicídio não são sinônimos.
Foi um show pra ficar na história, isso é certeza. No texto, creio que a intenção é a de dizer que o Arnaldo pode ter tentado suicídio, o que foi negado à época, por isso dizia-se que foi um acidente ou na verdade uma fuga, ou seja, ele pulou para tentar fugir do lugar onde estava internado.
Mac, o Elo Perdido foi lançado pela Vinil Urbano, pelas mãos do baterista Junior, se não me engano. A Baratos Afins não quis lançar porque a fita master foi perdida e o dono do selo alegava que o material existente não tinha qualidade técnica para ser lançado em vinil. A fita master original, gravada em estudio, se perdeu, parece que um produtor argentino prometeu lançar e sumiu com ela.
Existem videos no youtube com os shows dos dois dias no Sesc Belenzinho quase completos, é só procurar.
Valeu pela correção, Paulo! Eu tenho uma edição em CDR (Made Galeria do Rock) que junta o “Elo Perdido” ao “Faremos Uma Noitada Excelente”, ao vivo. Lembro da resenha na Bizz, e achava mesmo que tinha saído pela Baratos. Belo esclarecimento.
Quanto à questão da dúvida “fuga” X “suicídio”, me baseei muito no relato do Carlos Calado no “A Divina Comédia dos Mutantes”: a imprensa da época garantia que era suicídio, enquanto as pessoas ligadas ao Arnaldo acreditavam ser uma fuga. (Pessoalmente, fico com a teoria da “fuga”, mas não dá pra determinar uma coisa dessas assim!).
E valeu pelos toques, Paulo, Mac e Almir! 🙂
Foi um momento unico ver o Arnaldo se esforçando e tocando e cantando de todo coração, mas desculpa, essa analise do show está totalmente fora do que se viu lá, ele cantou e tocou muito mal, não pela sua capacidade que é imensa, mas pelo seu estado de saúde. Dizer que o show veio abaixo é querer tapar o sol com a peneira. Bonito ver o Arnaldo TENTANDO tocar paino? Foi muito, mas dizer que aquilo foi um show é demais. Me decepcionei com essa analise do show, cheia de paixão pelo artista que o Arnaldo foi mas longe de demonstrar o que foi a apresentação
Não achei o texto do Bruno fora do que se viu no sesc, o problema é aquele que pode acometer muita gente que está começando a escrever profissionalmente, aquela coisa de ” você está escrevendo para os fãs do Arnaldo ou para determinado veículo” etc. Quem foi lá ver o ex- Mutante achou sim que o cara estava tocando pra caralho, pois ouviu o Disco Voador, disco de valor terapêutico que o Loki gravou em estado paraticamente vegetativo. Mas quem foi ao sesc ver um espetáculo e não é grande fã de Arnaldo ou Mutantes, com certeza viu que o cara ” tocou tal música pela metade, só dois minutos”, entre outros comentários. Minha pequena resenha ao menos eu publiquei em sites e comunidades do Arnaldo, ou em tópicos sobre psicodelia, anos 60 etc.
Não vi o show e nem os vídeos, mas já vi outros shows do Arnaldo na internet e estava naquele show do Ipiranga em 2006. Mesmo contra minha vontade, acabo concordando com o Thiago Ferreira. “Lóki” é de arrepiar a espinha, lindíssimo, Mutantes é das maiores, senão a maior, banda brasileira de todos os tempos (e o Arnaldo era o coração dela), mas o que se vê hoje em dia é um ex-gênio lutando contra suas limitações físicas. Toda vez que vejo um vídeo dele eu fico num misto de admiração e torcida para que a coisa engrene, não saia errada, sei lá, é um sentimento estranho… Escuto o “Let It Bed” mil vezes e fico tentando encontrar onde tanta gente acha que ele é um grande disco…