Texto por Renata Arruda
Fotos por Liliane Callegari
A afirmação de Rogério Skylab na Folha de São Paulo ficou famosa: Romulo Fróes é o arauto da nova MPB. Porém, a ênfase que Skylab queria demonstrar não era essa, mas sim que o grande diferencial de Romulo no meio a tantos novos artistas que em comum possuem apenas o rótulo de “músicos da nova MPB” é o fato de ele dramatizar esta música. Isto ficou claro a partir do lançamento do complexo e ousado CD duplo “No Chão Sem Chão”, de 2009, em que para se livrar do estigma de sambista – ou de um pretenso bem sucedido músico que atualizou o samba – que seus dois primeiros CDs o “condenaram”, Romulo resolveu atirar para diversos lados na intenção de poder trabalhar com os vários caminhos possíveis da música brasileira. Como resultado, “No Chão Sem Chão” foi o trabalho mais elogiado de sua carreira e Romulo chegou a ser apontado como um dos nove nomes da nova geração que mudarão a música brasileira nos próximos anos.
Mesmo assim, ele ainda não sentia que tinha feito um disco com a sua cara. E dessa vontade surgiu o recente “Um Labirinto em Cada Pé” (2011) – que o compositor liberou para download gratuito aqui – onde Romulo mantêm a parceria com os artistas plásticos Nuno Ramos e Clima, e apresenta o que ele diz ser pela primeira vez um disco mais formatado. “É a primeira vez que faço um disco, sem nenhuma questão a ser resolvida”, diz o músico, que chegou a cogitar chamar o álbum apenas de “Romulo Fróes”. Também é a primeira vez que Romulo, antes também assistente de Nuno Ramos, se dedica inteiramente à música. “Parei de trabalhar com o Nuno desde a última Bienal, resolvi viver de música. Chegou a hora de falar de música”, declarou o não-músico, que se incomoda ao ver suas opiniões possuírem mais repercussão que suas canções: “Quero que meus pensamentos estejam atrelados à minha música, quero que você concorde ou discorde de minhas opiniões, ao ouvir minhas canções e não ao ler minhas entrevistas.”
No entanto, em um universo onde existem poucas cabeças pensantes dispostas a falar, é sempre um deleite ler as reflexões inteligentes e provocativas de Romulo Fróes. Não foi diferente nesta entrevista ao Scream & Yell, no Rio de Janeiro. Leia, concorde e discorde, de preferência seguindo o conselho do músico: ouvindo “Um Labirinto em Cada Pé”. Com a palavra, Romulo:
Em recente entrevista para a Folha de São Paulo, você declarou: “Não quero ser mensageiro de nada, eu quero que as pessoas ouçam minha música. É meu esforço e sempre será em fazer com que mais pessoas tenham acesso ao meu trabalho”. O que remete a uma declaração de Hermeto Pascoal, que disse nunca ter ganhado dinheiro com a música e que quer mais é ser pirateado mesmo, pois pra ele importa mais as notas musicais do que as notas de dinheiro. Você também se sente assim?
É diferente. O que eu vivo não tem nada a ver com que o Hermeto viveu. São momentos diferentes. Minha fala diz respeito ao momento em que minha geração se constrói e que coincide com a derrocada da indústria e o desenvolvimento e o acesso facilitado à tecnologia. Passamos a última década tentando entender esta nova ordem, quais os novos caminhos a seguir, quais os novos modelos de difusão e de produção, a internet, o fim do disco, a música de graça na rede, enfim, falamos de tudo, menos da música que estava sendo produzida. É isso que reivindico: já deu tempo de entender este mundo novo, agora é preciso voltar a falar de música.
Você é constantemente lembrado por suas declarações, mais do que por sua canção. Eu mesma te li antes de te ouvir, e acabei gostando do que ouvi. O Caetano, em quem você se diz espelhar, por exemplo, hoje também é mais, se não reconhecido, comentado por suas declarações do que por sua música, mesmo tendo lançado dois grandes CDs recentemente. De certa forma, ser uma figura cujo pensamento é relevante não acaba criando uma ponte positiva para a audição das canções?
Não me ressinto de ter um pensamento sobre a canção brasileira e tenho mesmo apreço pela discussão, mas quero que meus pensamentos estejam atrelados à minha música, quero que você concorde ou discorde de minhas opiniões, ao ouvir minhas canções e não ao ler minhas entrevistas. Quero que ouçam minha música pra ajudar no entendimento do que penso. Quando ouvimos Caetano falar, estamos com sua música na cabeça.
Você também falou sobre como se aprofundar na sua “ignorância técnica” lhe abriu “um mundo fascinante” e que seu approach com a música é mais intelectual. Esta característica cerebral também não seria um dos motivos pelos quais, involuntariamente, suas entrevistas acabem tendo impacto mais imediato do que suas canções?
Como diz o Nuno (Ramos), ignorância em arte pode ser muito rica se atrelada a outros valores, mas a ignorância em si mesma não é nada além disso. Quando falo em certa ignorância de minha parte, me refiro a minha formação musical. Não estudei música, mal sei os nomes dos acordes que toco. Isso não quer dizer que não tenha apreço pelo conhecimento musical, por isso sempre me cerquei de grandes músicos, porque pra colocar em prática minhas ideias “não-musicais” preciso de músicos capazes de fazê-las. Mas tenho plena consciência da minha música. Não sou intuitivo. Sei exatamente o que pretendo e pra onde encaminho minhas ideias. E não acho que minha música tenha menos impacto que minha fala. Espero que não. Seria muito frustrante pra mim. É que pra se ouvir um disco requer muito mais atenção que ler uma entrevista e requer tempo, coisa cada vez mais difícil nos dias de hoje.
E como foi que o cara que não se diz músico tornou-se o mensageiro da nova MPB?
Já estou no meu quarto disco em dez anos de carreira. Isso se deve ao fato de no início não haver quem comentasse nem a minha, nem a produção de outros artistas. Havia um sentimento, como ainda hoje há, embora menor, de que nada de novo estava sendo feito na música brasileira. Como se ela tivesse parado nos anos 1960. Eu me sentia angustiado em ver uma geração de artistas extremamente talentosos relegados ao anonimato, por isso passei a escrever sobre eles. Acabei tomando gosto pela coisa e passei a desenvolver um pensamento sobre essa geração. Daí o motivo de eu ser muito chamado para dar entrevistas – agora que se tenta entender e organizar essa nova música brasileira. Mas estou longe de ser um porta voz ou mensageiro, se há uma coisa a aprender sobre esta geração é que ela não possui nem uma só voz nem um só pensamento sobre a música brasileira.
Ano passado houve uma tentativa de discussão sobre a programação e as exigências das rádios para tocar as músicas de artistas conhecidos. Muitos desta nova safra da MPB também não tem espaço nas rádios populares, mas você disse no próprio Scream & Yell que ainda tem o sonho de se ouvir tocando nela. Este seria um sonho também de viver o modelo antigo, com gravadora e indústria apoiando o trabalho?
Tento não demonizar a indústria, afinal, foi dentro dela que se produziu a grande música brasileira, de Carmem Miranda à Marisa Monte. Mas é fato que ela perdeu o rumo da história, passou por cima de todo e qualquer pensamento que não fosse o do lucro fácil, rápido e descartável. Este é um dos motivos para sua crise. Neste modelo de indústria que vivemos hoje, minha geração definitivamente não se encaixa, mas criamos condições para sobreviver sem ela. Não podemos deixar de admitir que faz falta a estrutura que a indústria detém. Mas o fato é que não existe mais a possibilidade de se desenvolver um trabalho com propósitos, digamos, artísticos dentro da indústria.
Quando do embrião de “Um Labirinto em Cada Pé”, você declarou que queria fazer uma coisa mais parecida com um “disco”, algo que fosse “finalmente Romulo, pinçar esse Romulo que tem a ver com o samba, mas que não é do samba”. Acredita ter alcançado este objetivo?
Plenamente. “Um Labirinto Em Cada Pé” é meu disco mais formatado e digo isso sem detrimento algum. É a primeira vez que faço um disco sem nenhuma questão a ser resolvida, sobre ser ou não ser sambista, fazer ou não fazer uma canção que passasse pelo samba, temer ou não temer parecer antigo, enfim, questões que perpassaram meus três primeiros álbuns e que acredito que foram resolvidas neles mesmos. “Um Labirinto Em Cada Pé” nasce com todas essas questões já discutidas e com um desejo de imprimir uma voz mais clara, resultante desse processo de construção da minha música e acredito que essa voz, mais nítida, finalmente apareceu.
A figura recorrente do cão, “como um ser que defina o Brasil, a arte e a música brasileira” encontra paralelo na sua geração, de artistas independentes que precisam aprender a fazer tudo sozinhos?
Pode ser, mas não é nesse sentido que ela aparece no meu trabalho, tendo mesmo nomeado um dos meus discos. A minha aproximação (e dos meus parceiros mais constantes, Nuno Ramos e Clima) com a figura do Cão é poética e não alegórica. Ela se dá justamente por associação a um lado da cultura brasileira, menos luminoso, mais denso e profundo, de artistas que nos identificamos e admiramos imensamente como Nelson Cavaquinho e Oswaldo Goeldi. A figura do cão representa essa face da cultura brasileira.
Essa cena da qual você faz parte já existe há uns 10 anos, talvez tendo o Mulheres Que Dizem Sim como “ponto de partida”, mas só agora começou a ter espaço e reconhecimento maior, talvez até pela maior facilidade que a internet oferece hoje. Ao mesmo tempo, você disse que “os idiotas estão na internet com opiniões muito rasas, que eles ganharam voz no mundo”, o que seria uma espécie de efeito colateral. Como você vê esta nova realidade? Mesmo com a proliferação dos “idiotas”, está otimista com os rumos que sua geração vem tomando?
Tomei o Mulheres Que Dizem Sim como algum ponto de partida possível quando perguntado, por identificar na música que eles faziam semelhanças com o que eu venho fazendo ao longo da minha carreira. Acho que outros artistas podem identificar ou não, em outros trabalhos, o início dessa geração, mas sinceramente não vejo importância em determinar o começo dessa história e sim o momento atual porque ela passa. Como você disse, ela começa a ganhar maior reconhecimento e isso se dá mais pela quantidade enorme de bons trabalhos lançados a cada ano, pelo surgimento cada vez maior de novos artistas e pela confirmação de outros que assim como eu já caminham para lançar seus terceiros ou quartos álbuns, que por causa da internet, pois se ao mesmo tempo, é ela que democratiza o acesso e nos possibilita construir e divulgar nossa obra é ela mesma que a lança num mar infinito de outras obras. É preciso muito trabalho, paciência e persistência para se distinguir dentro desse imenso universo que é a internet e acho que o tempo, de novo ele, é nosso aliado nessa conquista.
Se o ouvinte médio perdeu contato com a arte em prol do entretenimento, se ele anda mais “emburrecido”, então imagino que seja uma tarefa árdua competir por espaço com as Claudias Leittes da vida. Mas você diz que não quer facilitar pro ouvinte, que espera algo dele. Como resgatar o interesse de um público tão viciado?
É muita ingenuidade achar que não somos ouvidos por causa da Cláudia Leite. A gente não tem absolutamente nada a ver com ela ou algum paralelo seu, seja no sertanejo universitário ou no axé. Não temos nada a ver nem mesmo em relação à dita MPB que se desenvolve dentro da indústria. Estamos fora dela. O novo ouvinte que se interessar por uma nova música brasileira, que pensa e propõe novos caminhos, que tenta levar adiante sua história, não vai encontrar isso dentro da indústria e nas formas tradicionais de divulgação. É preciso ir atrás dessa nova música. É preciso deixar de ser passivo, esperar pela música que oferecem à ele e ir atrás da música que lhe interessa.
Por outro lado, foi depois do complexo “No Chão sem Chão” que seu trabalho ficou mais conhecido, havendo até quem acredite ser este seu primeiro CD.
O tempo é nosso aliado e depois de ter lançado quatro discos, feito shows e mais shows, seu nome vai ficando mais conhecido Agora, esse “sucesso” não tem a mesma dimensão que antes. Vivemos um momento diferente. Outra coisa que penso que contribuiu para me tornar mais conhecido é o próprio crescimento da cena independente, com mais e mais artistas novos lançando trabalhos consistentes. Isso de alguma maneira acaba rebatendo no meu trabalho. É muito mais forte quando sua música tem com quem dialogar.
Como surgiu a ideia de regravar “Mulher sem Alma”, do Nelson Cavaquinho (no CD “Cão”, de 2006)?
Nelson Cavaquinho talvez seja o artista mais importante pra música que eu faço. Ele é meu parâmetro maior. Nada mais natural que explicitar essa relação e o modo como ela se dá na minha cabeça, que é do jeito mais livre possível e que é como encaro a música dele. Por isso aquela bateria algo descontrolada, descompassada, quase free, em cima de uma base rítmica sólida produzida não por ela, mas pelo violão de 7 cordas. É quase como se os instrumentos invertessem suas funções naturais, desmontando nossa percepção. É assim que encaro arte e é assim que encaro a música do Nelson Cavaquinho.
Um tempo atrás você declarou que o negócio era muito centrado em São Paulo e que praticamente pagou pra tocar no Rio, durante sua última turnê. Acha que de lá pra cá, está havendo mais espaço para se tocar fora de São Paulo?
Ainda é muito difícil, pra não dizer impossível, se pensarmos em mercado de música. Ano passado toquei em Belém e Belo Horizonte e foram shows maravilhosos, com gente cantando e pedindo músicas do meu repertório, mas só toquei nesses lugares porque fui selecionado num edital público para um festival patrocinado por uma grande empresa de telefonia. A possibilidade de eu voltar a tocar nesses lugares, com as condições que toquei, sem que seja através de editais, é nenhuma. O Rio de Janeiro começa a se recuperar nesse sentido e mais casas e teatros estão abrindo espaços pra essa nova geração. Acabo de fazer dois shows num pequeno teatro, também patrocinado por uma empresa de telefonia, que foram um sucesso. Ingressos esgotados nos dois dias, o que prova que existe público pra essa nova música. Pode não ser o público de grandes arenas, de milhares de pessoas, mas ele existe.
Quais são suas expectativas em relação à nova turnê? Você já fez shows em São Paulo e no Rio. Acredita que seu público tenha mudado?
As expectativas são as mesmas de sempre: tocar, tocar, tocar e cada vez mais em lugares que eu não tenha tocado antes. Vamos ver se o público mudou, aumentou, espero que sim. Só o tempo dirá. De novo ele, o tempo.
– Renata Arruda (@renata_arruda) é jornalista e colaboradora na empresa Teia Livre e na Revista Cultural Novitas
– Liliane Callegari (@licallegari) é arquiteta e fotógrafa. Veja mais fotos da apresentação aqui
Leia também:
– Show: “Um Labirinto em Cada Pé” ao vivo em São Paulo, por Marcelo Costa (aqui)
– Sobre o amor, a música e outras bobagens, por Marcelo Costa (aqui)
– Romulo Fróes lança “No Chão, Sem o Chão” com belo show, por Marcelo Costa (aqui)
– “No Chão, Sem o Chão”, Romulo Fróes: quarto melhor disco nacional de 2009 (aqui)
– Entrevistão Scream & Yell, Abril de 2010: Romulo Fróes (aqui)
Esse cara pegou esse estigma mesmo – de bom de entrevista e com o som desconhecido.
Eu mesmo sempre leio suas entrevistas e nunca ouço sua música. rsrsrs
Vou ouvir os vídeos dessa entrevista – aliás, ótima, parabéns Renata.
Obrigada! 🙂
Gostei da Filho de Deus, mas não gostei da música com o Arnaldo – gosto muito do Arnaldo.
Não tem de que, Renata.
É sempre um prazer ler uma entrevista com boas perguntas, fica meio caminho andado.
Estava em Belém no show unico do Romulo, nunca esquequerei, toramá que ele volte um dia, obrigado por essa. Abraços. Ub.
4 discos Brilhantes.
Parabens cara. Mesmo.
Caralho!! Essa ultima foto ficou sensacional , parabens a fotografa!!
Caralho, como eu pude perder um show do Rômulo Fróes em Belém? Infelizmente conheci o seu trabalho apenas esse ano. Uma pena mesmo. Não perderei uma próxima oportunidade.
Rômulo é definitivamente um dos melhores da atualidade. Uma discografia impressionante, ainda mais quando se percebe o quanto ainda é – injustamente- pouco conhecida. Um gênio em ascensão, na minha opinião.