por Marcelo Costa
“Ninguém vai acreditar em você. As pessoas vão começar a olhar você de forma estranha e não irão levar você a sério. Elas vão parar de falar com você”, avisa um personagem de “Além da Vida” (“Hereafter”, 2010) no meio da película a outro que quer “explorar” a vida após a morte. O veterano Clint Eastwood sabia muito bem que estava cutucando um vespeiro quando decidiu filmar o novo roteiro de Peter Morgan (“A Rainha”, “O Último Rei da Escócia”, “Frost/Nixon”), mas seguiu em frente.
Cutucar um vespeiro não chega a ser a frase mais correta. Ao abraçar a produção de Steven Spilberg, Clint sabia que estava – mais uma vez – tocando em um assunto polêmico, tabu, destes que muita gente se esquiva e trata com o descaso típico dos assuntos proibidos. “Você acredita em vida após a morte?”, pergunta um personagem em certa cena. “Não. As luzes se apagam e pronto”, responde o outro secamente. Só faltou um “passa a salada” para encerrar a questão.
Juízo de valor acerca de religiões e crenças deixados de lado (afinal, não cabe aqui discutir se existe ou não uma vida após a morte – e o próprio filme dramatiza isso, mas não incentiva), “Além da Vida” destaca uma história bastante interessante centrada em três focos narrativos que, claro, se intercalam em alguns momentos da trama. E, por mais que o receio o visite, soa bem menos piegas do que poderia ter sido.
Não que não seja piegas. Clint abusa várias vezes do som do piano e do cravo, que aumentam o tom emotivo e açucarado das cenas. E cisma em preencher de tons brancos várias passagens. Numa destas, após uma discussão com seu editor, uma jornalista deixa a sala por uma porta que parece ser a entrada para uma nuvem, como se o eu passado dela tivesse morrido, cedendo lugar a um novo eu. Metáfora ok, execução dispensável.
Também não espere surpresas dramáticas e reviravoltas estilísticas no roteiro, afinal o espectador já entra no cinema sabendo que pessoas vão morrer, e que o encontro deste personagem com aquele formará um elo de ligação com a outra vida – afinal um deles é vidente. As cartas de “Além da Vida” estão todas na mesa, e o que faz o filme valer à pena é a forma com que Clint conduz a história.
Há duas tragédias próximas e reais que delimitam o núcleo histórico da trama: o tsunami que atingiu a Tailândia em 26 de dezembro de 2004 (em uma seqüência sensacional de tirar o fôlego – e que por si só vale a ida ao cinema) e os ataques terroristas ao metrô de Londres, em 7 de julho de 2005. Entre as duas datas, dois irmãos ingleses, uma jornalista francesa e um médium norte-americano vivem seus dramas pessoais.
Em nenhum momento Clint resvala para a pregação e, ufa, para o ridículo. Não há um mundo a ser apresentado em “Além da Vida” (como no ridículo “Nosso Lar”). O cineasta limitou-se a reproduzir as imagens (desfocadas) que muitas pessoas que tiveram do outro lado (ou seja, morreram por alguns minutos) narram, lembranças de como foi a viagem, mas em nenhum momento a câmera leva o espectador para o outro lado. Muitos filmes de terror foram até mais longe, mas o terror tirava a seriedade/profundidade do tema.
Por sua vez, não há profundidade em “Além da Vida” (como muitos temiam). Clint não está defendendo uma causa (como fez em “Invictus”, e tornou o filme muito mais piegas que este), mas sim narrando uma história em que seus personagens vagam solitários tentando entender o mundo em que vivem. George Lonegan (Matt Damon), o cara que tem contatos com os mortos, não consegue entender/lidar com o “dom” que tem – Cole Sear, de “O Sexto Sentido”, não só falava como via pessoas mortas, mas ele era uma criança (e o filme é foda!)
“Além da Vida” não só trata com delicadeza o tema como crava as unhas no charlatanismo. Um dos personagens faz uma via sacra cômica (mas preste atenção: ninguém no cinema ri – ao contrário de quando “O Homem Sério”, dos Coen, vai se aconselhar com um dos rabinos) e infrutífera a falsos videntes que deveria fazer muita gente desistir de horóscopos. Médium de verdade, capaz de abrir uma porta com o outro mundo, esses são raríssimos. Porém, o mundo de “Além da Vida” (seu, meu, nosso) está povoado por gente querendo trazer o amor amarrado em três dias (por R$ 500).
“Além da Vida” está longe de ser uma obra prima do calibre de “Os Imperdoáveis” (1992), “As Pontes de Madison” (1995) e “Menina de Ouro” (2004) e nem é tão bom quanto “Bird” (1988), “Um Mundo Perfeito” (1993), “Sobre Meninos e Lobos” (2003) e “Gran Torino” (2008), mas também está longe de ser um filme ruim. Clint usa a temática religiosa como pano de fundo, e faz um filme bonito sobre as incertezas do homem moderno (cada vez mais solitário – apesar, e talvez por causa, da internet), sobre a complexidade do mundo, e a esperança no (re)encontro. O resultado (descontando trilha, o excesso de branco, um dou ois trechos explicados demais e o final meloso) é ok. Talvez não baste para a História (com H maiúsculo), mas funciona para o fim de semana.
Leia também:
– “As Pontes de Madison”, o amor sem ser piegas, cínico ou vingativo, por Mac (aqui)
– Nostálgico, “Gran Torino” abusa do politicamente incorreto. E emociona. (aqui)
– Repleto de imprecisões, “Invictus” abusa de cenas que buscam lágrimas fáceis (aqui)
– “A Conquista da Honra” e “Cartas de Iwo Jima”, por Marcelo Costa (aqui)
Bela análise. Será que essas derrapadas pro piegas teriam a ver com o fato da produção ser do Spielberg (Inteligência Artificial, por exemplo, deveria vir com um alerta para diabéticos)? Você citou o Sexto Sentido e numa matéria da Folha o roteirista conta que tinha pensado no Shyamalan pro projeto; mas daí caiu nas mãos do Spielberg, que deixou a direção com o Clint. Seria legal ver como ele se sairia.
Concordo que filmar o filme possa ser cutucar em vespeiro, mas talvez nos EUA ou outros países. Acredito que para o público brasileiro não tenha nada de cutucado ali no meio, o que, pelo menos para mim, acabou por tirar um dos maiores méritos do filme, que é a coragem. Acabo vendo o tempo todo, mesmo sem querer, na televisão, sabendo que está sendo lançado o Nosso Lar ou Chico Xavier. Acho que acaba por não causar grandes impactos por aqui e não adianta eu tentar me colocar em outro lugar para ser impactado, ou eu sou ou não.
Com isso, acho que o maior ponto passa a ser exatamente o modo como Clint não se deixa levar muito para nenhum dos lados. Retrata a história do filme sem tentar convencer que isso ou aquilo; apenas apresenta tudo de forma extremamente competente.
O filme é forte, principalmente da metade pro fim. É, ficou bem claro que ninguém sabia exatamente o que há depois da morte (se bem que as pessoas que ele – vidente-, ouvia, tinham existido, mesmo). E ficou bem estabelecida, também, a diferença entre falsos videntes e videntes, assumindo-se que há videntes de verdade. Então, sob a perspectiva do filme, os mortos comunicam-se com os vivos, embora não se possa saber onde eles ficam e o que fazem além da vida. Mas, ainda assim, achei que o tema do filme é a imensa solidão dos três personagens principais.
É, eu concordo com a análise do filme. Só acho um pouco longo. E pra constar, tinha um moço no cinema que ria de todo o filme! haha
só corrigindo, mac. Achei o filme um pouco longo, talvez se aquele meião fosse cortado ficasse um filme melhor!
Excelente post. sabe eu acho que a estetica conta muito apesar de nao ser tudo nao é mesmo.