Em 1987, Woody Allen se deu ao luxo de jogar um filme prontinho fora e refazer tudo do zero. Tendo finalizado o drama “Setembro”, o cineasta – insatisfeito com o resultado – reescreveu extensamente o roteiro, trocou boa parte do elenco e refilmou tudo. Claro que eram outros tempos: o diretor vivia então (a fase final de) seu apogeu criativo, um período que compreende os filmes entre “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa” (1977) e “Crimes e Pecados’ (1989). Seu nível de exigência consigo mesmo e seu vigor criativo certamente eram muito maiores do que os dos dias atuais. Talvez por isso Allen tenha dado seu OK a este “Você Vai Encontrar o Homem dos Seus Sonhos” (“You Will Meet a Tall Dark Stranger”, 2010), o longa mais preguiçoso e desinspirado que ele fez desde… “Scoop”? “O Escorpião de Jade”? Desde… sempre? Será que o Allen de 1987 ficaria satisfeito com este novo filme?
O problema do Allen de 2010 é que ele tem o que dizer, mas não consegue expressar-se muito bem. Os temas/obsessões pessoais são familiares (infidelidade & crise conjugal, insatisfação existencial, o fascínio cada vez mais descaradamente chauvinista por mulheres mais jovens). O subtexto do misticismo/espiritualismo/charlatanice também é conhecido, usado em uma meia-dúzia de filmes do homem.
O esquema ensemble de rodízio de protagonistas, as aspirações artísticas chocando-se com o rame-rame pedestre do cotidiano, o acaso determinando momentos cruciais: tudo isso já foi visto em outros filmes de Allen, tantos que nem vale a pena relacionar. E, importante ressaltar, o dilema não se encontra aí. A familiaridade, a recorrência de situações e personagens pode ser excessiva. Mas não prejudica tanto o filme quanto a falta de pulso na direção, o artificialismo das cenas ou a falta de humanidade dos personagens.
Fala-se muito em “Você Vai Encontrar o Homem dos Seus Sonhos”. Para compensar a pouca ação e a falta de nuances dos protagonistas, Allen bota-os para falar (ou melhor, resmungar) sem parar, e em cima disso ainda coloca uma voz em off pontuando as cenas. Entretanto, nenhum dos personagens parece crível, ou pelo menos passavelmente humano. Não há qualquer conexão com o público.
É impossível compadecer-se do romancista frustrado Roy (Josh Brolin) e sua crise criativa, ou de sua esposa Sally (Naomi Watts), insatisfeita com o marido fracassado e cobiçosa do patrão (Antonio Banderas, canastríssimo – deve ter batido o recorde mundial de levantamento de sobrancelhas). O drama de Alfie (Anthony Hopkins) deveria ser ao menos tragicômico: o vovô garoto que, num arroubo proustiano, busca o tempo perdido “alugando” uma esposa com metade de sua idade. O cinismo e a falta de sutileza com que Allen retrata a relação do casal destrói qualquer tentativa de empatia.
Sobra Helena (Gemma Jones), ex-mulher de Alfie, mãe de Sally e sogra-megera de Roy. É uma personagem ligeiramente mais interessante que os demais, mas tão implausível quanto, dada a forma como Allen a apresenta: uma velhota doidivanas, a única merecedora de alguma relativa redenção ao final – ainda que por meio da benção da ignorância e da alienação. A sem-gracice extrema da encenação piora tudo. “Você Vai Encontrar o Homem dos Seus Sonhos” é teatral no pior sentido do termo; sua “ação” resume-se a pessoas entrando e saindo de quartos e salas, declamando suas falas de forma dura e inconvincente.
Mais fraco dos quatro longas que Allen rodou em Londres, faltam a “Você Vai Encontrar o Homem dos Seus Sonhos” as duas características que costumam redimir até seus trabalhos mais ligeiros: o humor e a reflexão existencial. Quase não se ri (apesar do termo “comédia romântica” ser usado no cartaz brasileiro) e no fim, a única conclusão possível é de que a felicidade só é possível a quem ilude a si mesmo. Estaria Allen feliz agora?
Leia também:
– Sobre todos os filmes de Woody Allen de 0 a 10, por Marcelo Costa (aqui)
O cara tem quase 80 anos. Torço muito para que você ainda consiga trabalhar quando tiver essa idade, escrever “críticas” tão “boas” quanto as que você tem escrito no “auge” da sua carreira de “jornalista”.
KKKKKK. Muito bom André.
Tem um texto da Dulce Quental aqui no S&Y muito bom, sobre um filme do Allen que ela acabara de assistir. Os filmes são todos iguais mesmo, e são ótimos (até os ruins), nos levam a um mundo realmente muito diferente, mas que eu curto acreditar está por aí, em algum lugar. E Vicky Cristina Barcelona, Match Point e Desconstruindo Harry são todos anteriores a 1989, não é?
Ronaldo, o texto da Dulce é este:
http://www.screamyell.com.br/outros/dulceseis.htm
E “Vicky Cristina Barcelona” é de 2008, “Match Point” (que para mim é um filme top 5 na carreira dele) é de 2005. Só “Desconstruindo Harry” é anterior a 1999, sendo de 1997.
Assino embaixo da resenha do Bart. O fanatismo não deve cegar. “Você Vai Encontrar o Homem dos Seus Sonhos” é fraquissimo, um dos filmes mais fracos da carreira dele.
Como nos últimos cinco anos ele nos brindou com dois filmes excelentes (“Vicky” e “Match”) e dois bons (“O Sonho de Cassandra” e “Tudo Pode Dar Certo”), é possível ainda esperar bons filmes do homem. Mas se ele perder a mão na direção, abandonar personagens, não amarrar o roteiro, e editar com desleixo (como neste filme acima), a gente não elogiar. Eu, particularmente, admiro o cinema de Woody Allen. Mas sobretudo admiro o cinema. Quando bem feito.
Abraço
Bem, como parco conhecedor do cinema de W.A. (sim, sou viciado em W.A.; conheço tudo do judeuzinho punheteiro), concordo com MC.
M.P. foi sua última obra-prima. Vicky é sua penúltima. A ordem das obras-primas nem vem ao caso.
Woody é Woody e gosto é gosto.
Eu, por horrível exemplo, gosto de Escorpião de Jade, que W.A. acha uma porcaria. Que sei eu? Nada, óbvio.
Acho Desconstruindo Harry um de seus melhores filmes, top five meu, e esse nem sequer foi lançado em DVD por aqui.
Eu gostei deste último. Acho melhor que “Cassandra”, por exemplo.
E sou o primeiro a dizer que “Antes que o diabo saiba que você está morto” é muito melhor.
Bem… Enfim… Este último W. é bom. E bom, em se tratando de W., é acima da média.
Pra mim, tá ótimo. Nota 8,5.
André,
se seu desejo for sincero, agradeço muito.
abs
MAB
Obrigado Mac.
Quanto aos filmes que citei, estava apenas brincando, pois todos são posteriores a 1989, de “Crimes e Pecados”, e eu acho que são dos melhores do WA.
Eu não assisti ainda ao último filme, mas a gente sabe que todo artista tem seus pontos altos e baixos. Mas acho que é uma opinião bem minoritária que essas mais de duas décadas de filmes, creio que anuais ou quase isso, foram safra ruim, quando vários desses são preferidos de muita gente.
Eu também acredito que ainda possa vir coisas boas por aí, enquanto o artista viver.
Abraços.
Marco, concordei com quase tudo que você falou sobre esse filme.
A única coisa que fico em dúvida é em relação a essa legitimidade dos personagens. Não acho que isso tenha sido um problema. Para mim a maior frustração desse filme é que ele bão inovou em nada. Muitos filmes do Woody Allen parecem ser exatamente iguais agora: mesmos problemas, mesmas ironias, piadas quase parecidas… E quando ele não atua tem sempre alguém que atua como ele.
Eu gosto muito dos filmes dele, mas acho que é bem difícil acertar sempre… Para mim nesse filme nd salvou, é bem fraquinho. Uma pena!
aaa essa Indiana do “Quem Quer Ser Um Milionario” vale o ingresso…