por Marcelo Costa
Texto publicado originalmente no Scream & Yell em 12/10/2001
Já faz um bom tempo que a música pop não cria nada de novo, instigante. Na verdade, desde “Ok Computer” do Radiohead que tudo soa deja vu e blá blá blá. Os melhores álbuns de 2001 não trazem nada de novo além de um punhado de belas canções, o que anima o freguês, mas anda faltando algo. Senão, vejamos: O Manic Street Preachers lançou o bacanudo (e longo demais) “Know Your Enemy”, uma junção dos dois álbuns anteriores do trio galês. Novidade? Nenhuma. Nick Cave destila poesia maravilhosa em seu 12º álbum, “No More Shall We Part”. Um álbum sensacional. Novidade? Nenhuma. Stephen Malkmus lançou um bom álbum à lá Pavement. Travis lançou um álbum rascunho de Travis. R.E.M. lançou o 12º melhor álbum de sua carreira, “Reveal”, e logo chega as lojas “Is This It”, da bandinha do momento, The Strokes, um punhado de canções legais inspiradas em Stooges e Velvet. Novidades? Nenhuma.
O que o Los Hermanos tem a ver com isso? Nada e tudo.
Nada porque a velha guarda jornalística e a garotada indie adora inventar regras malucas e, numa delas, acreditar que a música pop nacional é infinitamente inferior ao mesmo quindim estrangeiro. E tudo porque, sim, “Bloco do Eu Sozinho”, novo álbum do quarteto carioca, é inventivo, instigante, chapado e maravilhoso, melhor que todos os álbuns citados no segundo parágrafo.
O jornalista enlouqueceu? Não, mas para descobrir isso, caro leitor, você terá de baixar a guarda. “Bloco do Eu Sozinho” é um puta disco por onde quer que se olhe. De título melancólico, de natureza experimental, de briga com gravadora, de citações cool, o álbum pega na veia e mostra que a saída para a música pop nacional é ser antiga e atual no mesmo riff de guitarra, no mesmo som de tuba, na mesma tristeza de letra que embalaria sambas-canção nos anos 30 e que embalam relacionamentos partidos em 2001.
Enquanto 90% do rock mundial segue atrás do Radiohead (o underground nacional incluso) que já nem sabe mais pra onde ir, os Hermanos apoiam-se em si mesmos para escrever mais um capítulo grandioso da música brasileira. “Bloco do eu Sozinho” é neto de Noel Rosa, filho de Picassos Falsos e primo em segundo grau do clássico “London Calling”, do Clash.
E é herdeiro direto do primeiro álbum da banda e do maior hit da recente história do rock brasileiro. Sim, “Anna Julia” é culpada por quase toda beleza de “Bloco do Eu Sozinho”. O hit “jovem guarda” aprisionou a banda numa cela com 250 mil pessoas cantando em coro o refrão. Mas, como sabiamente disse Marcelo Nova numa entrevista exclusiva para o S&Y, “toda música que toca demais enche o saco, seja ‘Anna Julia’ ou ‘Joana D. Arc'”. Ou “Wonderwall”.
A banda, perdida no meio da gritaria, escolheu um sítio afastado e decidiu repensar o carnaval. O resultado é uma brusca pisada no freio. Tão brusca que uma pendenga entre gravadora, produtor e banda acabou saindo dos estúdios e ganhou páginas de jornais espalhando que a gravadora recusou o álbum, que a banda peitou a gravadora e que a saída feliz para ambas as partes foi uma remixagem (acompanhada pela banda) de um terceiro (assim como Scott Litt fez em “In Utero”, do Nirvana).
O resultado é uma pequena obra prima. Uma mistura esquisita de samba, rock, ska, MPB, guitarras, samba-canção, vaudeville, maxixe, dixieland, orquestra de cordas, trombones e letras tristes. Quem esperava uma nova “Anna Julia” já recebe o recado na primeira faixa do álbum: “Todo Carnaval Tem Seu Fim”. Este “Bloco do Eu Sozinho” é um disco de quarta-feira de cinzas, um disco de ressaca, de maquiagem borrada, camisas suadas e, sobretudo, um disco de quem vai embora para casa sozinho após a festa.
O que mais impressiona é a qualidade dos arranjos, os detalhes.
O álbum começa com sax e bateria que remetem a “London Calling”, a música do Clash. O riff de guitarra é atropelado por trompete e trombone e tudo se junta no refrão: “Deixa eu brincar de ser feliz, deixa eu pintar o meu nariz”. Um flugelhorn abre a faixa dois, “A Flor”. “Retrato de Iaiá”, a terceira, se apoia em ska enquanto a genial “Assim Será” mistura pandeiro e guitarras em uma canção de despedida que diz “e você vai ser mais feliz longe de mim”.
Uma canção como “Sentimental” nada deve a qualquer hit do Travis e do Coldplay. “Cher Antoine” é cantada metade em francês, metade em português. Os metais chapam em “Deixa Estar” (“Digo que não ligo, mas não vivo sem você”). “Fingi na Hora de Rir” traz microfonias e mais metais e mais tristeza. Mas as duas canções mais fundo de poço do álbum foram deixadas para o fim, separadas pelo hardcore “Tão Sozinho”. “Veja Bem Meu Bem” e “Adeus Você” pegam pesado nas dores do coração. A melhor faixa do álbum, “Cadê teu Suin?” é uma brincadeira de sílabas que dispara farpas para todos e para tudo.
Quem é teu padrinh
Onde é que tu to
Cadê teu suin-?
Guitarra não pó
Desista mole
Quem é que te indi
Cadê eu suin-?
Com que sobreno
melhor ir sain
dou nem mais minu
tô nem mais a
inda tem a cora
gentinha atrevi
da cá sua vi
da cá teu suin
guiche só de ven
da lá toma no
tamanha revan
cheio de vingan
santinha Cecili
andou me esquecen
dou rima por p
hão de teu suin!
Acerta esse tom
zera essa reza
aumenta o voc
calma com o andamen
to insatisfei
tomara que venh
aquele refr
hão de ter o suin
guilhotina
EU QUE CONTROLO O MEU GUIDOM!
COM OU SEM SUIN!
Em um ano em que o rock mundial está caminhando em círculos, as novidades vão surgir dos lugares menos óbvios. Assim, bandas fora do eixo anglo-saxão podem ser o sopro de inteligência em um meio acomodado. Pizzicato Five e Café Tacvba são nomes de destaque. E “Bloco do Eu Sozinho” mostra que o Los Hermanos tem cacife para algo maior. Sem padrinhos, sem ninguém indicando, os moleques não desistiram. Estranho o mundo. Eles se fodem para lançar um discaço e quem ganha o presente somos nós. Estranho e genial.
Com exclusividade para o Scream & Yell, Rodrigo Amarante e Marcelo Camelo comentam, faixa a faixa, o primeiro disco clássico da música brasileira no século 21
TODO CARNAVAL TEM SEU FIM
Camelo: A letra é muito bacana. É uma mensagem de todo o disco. Acho que o refrão desse disco é o cerne de tudo: “Deixa eu brincar de ser feliz / deixa eu pintar o meu nariz”. Resume todo o disco essa frase. Tem muito do nosso romantismo aqui.
A FLOR
Camelo: Foi a segunda música que eu fiz em parceria com o Rodrigo (Amarante). Foi feita em 99, quando estávamos em Recife para o Abril Pro Rock. É uma das músicas que o público gosta bastante, já vínhamos tocando ela nos shows.
RETRATO PARA IAIÁ
Amarante: Essa música é sobre encontrar um amor de verdade. É triste, mas fala de um amor futuro.
ASSIM SERÁ
Camelo: É uma das músicas que tem uma harmonia muito boa, com um arranjo de metais maravilhoso. Tem um estilo que eu aprendi, que é tocar o samba em um andamento diferente, lento, com dois pandeiros em estéreo. Tem uma letra bem triste, mas esperançosa mesmo assim.
CASA PRÉ-FABRICADA
Camelo: Talvez seja a música do disco com mais influência de Weezer. Tem a guitarra pesada, ritmo rachado e um teclado moog.
CADÊ TEU SUIN-?
Camelo: É uma crítica à indústria musical em um todo. Pela primeira vez nós fizemos um dixieland de branco, meio quadrado, mas com um pouco de swingue. Tem uma letra muito boa, a que eu mais gosto.
SENTIMENTAL
Amarante: É uma música pesada, seja na letra como na melodia. Fala sobre se afastar, perder, sobre uma pessoa que você ama muito te deixar.
CHER ANTOINE
Amarante: É um tanto trágica. Traz uma letra em francês triste. Mas é um ska de churrasco, descompromissado.
DEIXA ESTAR
Camelo: Acho que é música que mais se parece com o Los Hermanos do primeiro disco, tem um ska reto, quadrado. A letra é toda formada de trava-língua.
MAIS UMA CANÇÃO
Camelo: Tai uma letra que eu não gosto muito, mas acho ela bem espontânea. Ela bonita na sua banalidade. A ideia era gravar ao vivo. Mas tem um clarinete dobrado que é lindo. Acabou ficando simples e bonita
FINGI NA HORA RIR
Camelo: É uma canção antiga, que fiz quando fomos mixar o primeiro disco em Los Angeles. Foi uma das mais difíceis que gravamos. Ela muda o andamento no refrão, depois muda de novo. Só conseguimos achar um meio-termo dela quando entramos em estúdio.
VEJA BEM MEU BEM
Camelo: É outra que tem uma letra boa. Fala de uma relação de duas pessoas, onde uma pessoa fala que trocou o parceiro por outra, porque estava difícil sobreviver nos dias ruins. Basicamente é um samba. É um lamento também.
TÃO SOZINHO
Camelo: É a música mais antiga do Los Hermanos. Essa é da época de uma outra banda que eu tinha. Como é um hardcore pesado, ela destoa um pouco do resto do disco. Mas é legal para balancear.
ADEUS VOCÊ
Camelo: Essa letra eu fiz quando os pais da minha ex-namorada foram morar fora do país. Fala sobre a despedida de uma mãe para uma filha. Só que depois que terminei o namoro com ela, começou a fazer muito sentido para mim. Mostra que uma relação entre homem e mulher também se aproxima de uma relação mãe e filho. Tem uma orquestra barroca no final que é maravilhosa.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
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– “Ventura”: a consistência e maturidade do Los Hermanos, por Jonas Lopes (aqui)
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– “Bloco do Eu Sozinho” e “Ventura”, os dois melhores discos dos anos 00 (aqui)
Sei que o Camelo se mostrou um cara muito chato, o quarto disco deles é metade insuportável e que Los Hermanos tem fãs muito chatos. Mas, Bloco do Eu Sozinho continua sendo um disco sensacional.
Acho estranho quando a Polícia Indie passa a perseguir a banda como se eles nunca tivessem feito nada de bom.
Guilherme, acho que com o passar dos anos os fãs chatos deixaram de existir, já que a banda acabou, não produz mais nada e os discos solos do Amarante e Camelo pouco ou nada tem a aproveitar (pelo menos pra mim… e não vejo ninguém comentando sobre esses discos solo).
Me lembrei desse texto excelente: http://adolargangorra.blogspot.com.br/2008/11/como-me-fudi-no-show-do-los-hermanos.html