Esse você precisa ver: “Possessão” é tão intrigante quanto assustador – e sempre memorável e perturbador

texto de Davi Caro

A recente lista publicada pela Variety dos 100 Melhores Filmes de Horror de Todos os Tempos pode não se distanciar tanto de elencar aquilo que se tem como óbvio nas grandes produções do gênero – a inclusão de longas já bem conhecidos mesmo em meio aos menos entusiastas do terror cinematográfico, ao ponto de alçar ao primeiro lugar o clássico “O Massacre da Serra Elétrica”, de Tobe Hooper (1974), é latente. Ao mesmo tempo, investir tempo e atenção aos filmes destacados pode revelar exercícios de gênero capazes de entreter tanto quando confundir. “Possessão”, dirigido pelo polonês Andrzej Zulawski e lançado em 1981 (e condecorado com a 67ª posição na publicação da Variety), talvez seja um dos mais singulares exemplos realizados ao longo dos muitos anos de história do terror nas grandes telas. Com subtextos carregados de drama psicológico, conflitos existenciais e uma abordagem do horror corporal no mínimo distinta, mesmo um período de mais de quatro décadas parece não ser suficiente para explicar o estranho fascínio que o longa é capaz de despertar. Algo como “História de Casamento” (2019), mas dirigido por David Cronenberg.

A narrativa segue os passos de Mark (Sam Neill), um espião que retorna a seu lar, na então Berlim Ocidental, numa tentativa de se reconectar com a esposa, Anna (Isabelle Adjani) e salvar seu casamento, apesar da aparente insistência desta última em um divórcio. A reunião com a mulher, e com o filho que tiveram juntos, é sucedida de comportamentos aparentemente erráticos da parte de Anna, que revela ter um amante, Heinrich (Hainz Bennent) e demonstra descuido extremo em relação à criança. Entre episódios de violentos conflitos domésticos verbais e físicos, Mark contrata um investigador, para tentar entender a extensão da infidelidade da esposa, bem como explicar suas atitudes extremas. O que ele não espera, porém, é encontrar uma trama grotesca e perturbadora por trás do distanciamento emocional de Anna – uma teia de morte que vai além da aparente psicose da perturbada parceira, e envolve o próprio espião, com trágicas consequências.

O dramático enredo desenvolvido por Zulawski talvez seja a principal fonte do apelo emocional que tantos demonstram ter para com “Possessão”: mesmo em suas passagens mais abstratas e (à princípio) intransponíveis, o roteiro prende a atenção do espectador de formas que vão além do alerta do próximo susto. Afinal, tal qual a típica e inexplicável fascinação de cidadãos por acidentes de trânsito, a percepção da turbulenta relação entre Anna e o marido exerce um domínio sob a consciência daquele que assiste ao filme pela primeira vez. É o tipo de experiência perturbadora em sua imersão, à medida que se tenta juntar as várias peças do quebra-cabeça criado pela (impressionante) cinematografia. A criação de ambientações cinzas e claustrofóbicas tem sua opressão alicerçada tanto no trabalho de efeitos visuais práticos criados por Carlo Rimbaldi (que trabalhou, em 1979, no “Alien” de Ridley Scott) quanto na enigmática sonorização do também polonês Andrzej Korzynski – que já havia trabalhado com Zulawski em “The Devil” (1972), filme banido pelo então regente governo comunista da Polônia, e a razão que acabou levando o diretor a se exilar de seu país.

O exílio pelo qual Zulawski passava em meio à escrita do roteiro de “Possessão” era outro: o da própria esposa, de quem se divorciava ao mesmo tempo. E seu estilo de direção, apesar de cobrar certo preço, conseguiu extrair o que de mais profundo poderia haver na capacidade de atuação de seu elenco, sobretudo da dupla que compõe o núcleo deste dramático e traumático fim de relacionamento: a falta de engajamento puramente sentimental de Mark não seria possível de alcançar se não fosse por um ator do calibre de Sam Neill, que intercala períodos de estoicismo enervante e rompantes de fúria e descontrole que beiram a psicopatia. Heinz Bennent se utiliza de ares afetados e lúdicos para dar vida a Heinrich, com uma abordagem que pode parecer um pouco deslocada em certas passagens – mesmo em uma produção tão pouco ortodoxa como esta. E o pequeno Michael Hogben canaliza muito bem a tragédia familiar e os efeitos que ela tem nos mais novos através de sua interpretação como Bob, o filho do casal.

Isabela Adjani, no entanto, é o destaque supremo do filme. A sutileza com a qual sua personagem transita entre momentos de fragilidade extrema e pontos de violenta ira e descontrole é uma peça chave no apelo do longa e de sua reputação ao longo dos anos. Até mesmo trechos onde a atriz age com ternura parecem feitos para surpreender os menos preparados, tamanha a apreensão capaz de ser conjurada por sua perofrormance. E, em se tratando de performance, impossível não destacar a famosa (ou notória) cena filmada em uma estação de metrô berlinense vazia: sem qualquer fala, e composta apenas de uma perturbadora, macabra e inquietante coreografia, Adjani transmite através de seu olhar vidrado o desespero de uma mulher à beira da insanidade, conforme sofre com a possessão do título, à medida que seu corpo se contorce por corredores e seus transtornos, psicológicos ou não, finalmente vem à tona de todas as formas possíveis. Filmada em pouquíssimos takes, trata-se daquela que talvez seja a única passagem do filme conhecida por aqueles que pouco, ou nunca, ouviram falar sobre sua história.

A morna recepção percebida após o lançamento de “Possessão” talvez tenha a ver com a pouca boa vontade dos próprios estúdios à época: principalmente nos Estados Unidos, onde a produção foi lançada como um filme de terror mais “tradicional”, as reações foram confusas e refletiram a pouca importância dada à estratégia de lançamento, uma vez que o filme também não atingiu o grande circuito por muito tempo. Apesar dos elogios concedidos às atuações – e vale lembrar que Neill e Adjani não eram estranhos ao cinema de horror (com o primeiro interpretando uma versão mais velha do anticristo Damien em “A Profecia III”, também de 1981, e a segunda tendo tido papel fundamental no “Nosferatu” de Werner Herzog, de 1979), o produto final foi alvo de confusão por parte do público em geral.

Somente anos mais tarde o trabalho de Zulawski (falecido em 2016) passaria a ser reconhecido como um clássico cult, muito por causa de sua reputação em meio a cinéfilos, propagada pelo próprio elenco – Sam Neill, mais tarde reconhecido pelo sucesso blockbuster de “Jurassic Park” (1993), teria dito que “Possessão” foi “o filme mais extremo que já fiz […] [Zulawski] demandou coisas que eu não faria ou não poderia fazer hoje em dia. Mal escapei com minha sanidade intacta”; Isabela Adjani, dizem rumores, teria tentado suicídio após a produção. De um modo geral, “Possessão” é um filme cuja lenda passa longe de fazer jus ao real mérito do qual é merecedor. Através de profundas e complexas reflexões a respeito da psiquê humana, trata-se de uma obra que se distancia dos arquétipos tão difundidos em produções que tratam de possessões de qualquer tipo, preferindo focar suas lentes em um tipo de drama pelo qual inúmeras pessoas passam, dia após dia. Neste Halloween, pode valer a pena investir tempo e atenção para escapar do óbvio e se aventurar em um longa como este. Abordando temas comuns, reais e fictícios, de uma forma totalmente única, “Possessão” é um filme que pode agradar, ou intrigar, sem meias medidas. Seja a impressão qual for, é um filme que deve povoar os pensamentos de espectadores, de primeira viagem ou não, por muito tempo – não só pelos terrores que poderiam ser reais, como também por aqueles que já o são.

– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.

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