entrevista por Bruno Lisboa
Fundada em 2015, A Autêntica é uma casa de shows de Belo Horizonte que inscreveu seu nome no cenário da música independente do país. Reconhecida por sua profunda ligação com a cena musical contemporânea, A Autêntica tem sido um porto seguro para público e artistas das mais diversas tribos.
Com uma curadoria pautada pelo respeito à diversidade cultural, humana e musical, a Autêntica sempre teve uma programação intensa recebendo uma média de 12 eventos ao vivo por mês. Porém, devido as agruras da pandemia, a casa fechou as portas em 2020. Mas muito se engana quem a acha que a história se encerra aqui!
Com fôlego e energia renovadas, A Autêntica agora pretende alçar voos mais altos, mudando-se para um novo endereço e num local ainda maior: o antigo Lapa Multishow. Durante anos, o Lapa foi um dos palcos mais importantes da cidade, mas fechou as portas em 2011 e desde então tem funcionado como estacionamento.
Para que o projeto seja concretizado, os proprietários da casa colocaram no ar uma campanha de financiamento coletivo. Com o objetivo de arrecadar R$ 200 mil reais até 20 de dezembro de 2021, toda a verba será utilizada para reformas no espaço. Para os que contribuírem, o valor investido será revertido em dobro (as chamadas “Dobradinhas Autênticas”). Os créditos podem ser utilizados na aquisição de ingressos de eventos a serem realizados em 2022.
Por telefone, o multifacetado Léo Moares (que além produtor e músico é um dos sócios da Autêntica) fala sobre como nasceu a sua relação com o universo da cultura, o legado deixado pela casa de show em sua primeira fase, a ascensão do mercado musical independente e muito mais. Confira!
Como cidadão belo-horizontino pude acompanhar de perto sua trajetória pelos mais diversos caminhos. Mas a cultura, em suas mais diversas vertentes, sempre foi o elo. Desta feita queria entender mais como você adentrou nesse universo, quais foram as primeiras portas que se abriram e em que momento você percebeu que esta relação o definiria para todo e sempre?
Eu comecei na música ainda em Viçosa, cidade onde passei boa parte da minha infância e adolescência. Só que lá eu não tinha nenhuma perspectiva de profissionalização. Foi quando cheguei em BH, no início dos anos 90, que me enturmei com a galera da música e aos poucos fui enxergando ali uma possibilidade. Tive uma banda na época da faculdade, os Gardenais, com a qual lancei dois álbuns, sendo que o segundo (“Lindo Triste Mundo”, de 2006) foi produzido por Kassin e Berna Ceppas, no Rio. O trabalho dos Gardenais rendeu muitas coisas legais, incluindo a participação no Conexão Telemig Celular, a abertura do show de lançamento do álbum “4” do Los Hermanos, a participação no Show das Décadas, com nomes como Paralamas do Sucesso, Vanessa da Mata, Cidade Negra, e outros. Eu já vinha me enveredando pelo áudio, e pela produção musical, e com a implosão da banda acabei abrindo um estúdio, o Pato Multimídia, onde gravei álbuns relevantes da cena local, como “Homens Lentos” da Fase Rosa, “Naturais e Idênticos…” do Dibigode, e vários outros. Nessa época já estava com o Valsa Binária, banda na qual assumi a frente, compondo e cantando, e circulei por diversos festivais. A essa altura eu já encarava minha carreira como uma mistura de atuações em diversas áreas da música, sem pretensões de ter na banda meu ganha-pão. Depois de participar do Programa de Soluções Estratégicas Para a Música, do SEBRAE-MG, acabei detectando essa lacuna na cena local, que era uma casa de porte médio, aberta à música autoral. Daí nasceu A Autêntica, que abrimos em 2015 e fomos forçados a fechar pela pandemia.
Falando da Autêntica, eu era um assíduo frequentador da casa. E apesar de ser frequentador de muito espaços culturais em BH (Matriz, Lapa Multishow, Butecário…) era ali que me sentia em casa. E esta percepção veio desde a primeira noite aberta ao público, que teve um show catártico da Lupe de Lupe em 2015. De lá para cá, vi o espaço crescer, em vários sentidos, e sentia um enorme orgulho de pensar que a minha cidade natal tinha espaço que abrigava as mais diversas manifestações musicais, com um olhar atento para a cena independente. Nesse sentido como foram estes quase cinco anos de atividade e qual o legado deixado desta primeira fase?
Esse show da Lupe de Lupe foi o primeiro aberto ao público da casa. Na noite anterior tinha rolado um evento fechado de lançamento com Marco Lobo e Billy Cobham. Pra gente foi muito simbólico que logo no primeiro fim de semana a casa já tenha dado esse recado, recebendo um show internacional num dia, e no outro um show de uma banda local, com perfil tão alternativo como a Lupe de Lupe. É o que a gente sentia falta na cena, uma vez que esses outros locais que você citou são incríveis, mas têm um recorte estilístico bem específico. A ideia da Autêntica sempre foi ter o leque o mais aberto possível, abrigando todo o espectro da música contemporânea. É a casa que recebe o Roberto Menescal um dia e em outro o Napalm Death, e o palco onde esses caras tocaram é o mesmo onde a garotada que frequentava as Sessões Autênticas (nossa noite de palco aberto) tocava. Engraçado que a minha geração tem muito forte a imagem do Lapa Multishow ocupando esse espaço, e acho um agradável capricho de destino que agora a gente vá ocupar aquele imóvel. A gente sentiu uma mudança no astral da cena independente logo de saída, vinha gente de banda dizer que estavam desanimando com o autoral, mas que a Autêntica tinha dado um gás de ânimo. Acho que parte do legado é esse, de mostrar que é sim possível, mesmo que não seja fácil, obter sustentabilidade trabalhando com música autoral.
E vocês estão com campanha de financiamento coletivo para reabrir as portas num local emblemático para a cidade. Porém, em tempos em que vemos diversas casas de show enfrentarem dificuldades / fecharem as portas devidos a diversos fatores, vocês decidiram seguir em frente. Quais são as motivações que alimentam esta continuidade e o que podemos esperar da nova Autêntica?
O modelo de negócios da Autêntica, com capacidade para 400 pessoas, trazendo artistas de fora como fazemos, é bem desanimador. A coisa tinha que girar muito bem pra conseguirmos um zero a zero. Casas do mesmo porte estavam, já antes da pandemia, fazendo movimentos para reduzir custos, indo para locais menores, mudando o modelo de programação evitando artistas de fora. Nós pensamos em ir no sentido oposto, indo para um local com maior capacidade de público, mas com custos não tão maiores. Dessa forma a gente consegue aumentar consideravelmente o potencial de receita, com uma elevação bem pequena dos custos fíxos. Então poderemos trazer artistas de um patamar maior, que não cabiam no antigo espaço, de uma forma muito mais viável financeiramente. E com um projeto modulável, continuaremos conseguindo trazer artistas que levam 300 a 600 pessoas e até menores, com 100 a 200 pessoas, como fazíamos, mas contaremos com um a dois “eventões” de casa cheia por mês que empurrarão a casa pro azul. Foi a forma que encontramos no plano de negócios para equilibrar o lado financeiro ao nosso propósito inegociável de mantermos uma relação íntima com a cena local. No papel está lindo, vamos ver como isso acontece na prática.
Para encerrar gostaria que você falasse do momento especial que a música independente vive. Acredito isto se deve, primeiramente, ao grande volume de produções artísticas de qualidade que acabam por reverberar, por exemplo, num maior engajamento do público. O resultado disso pode ser percebido tanto nas plataformas de streamings quanto nos line ups de grandes festivais. Nesse sentido, como você vê este movimento? E ainda: qual foi / é o papel da Autêntica na construção deste cenário?
Pensando no mercado musical dividido em três fatias, tendo no topo o mainstream, no meio o mercado médio, e na base o underground, eu enxergo da seguinte forma. Quando a gente fala de música independente, estamos nos referindo ao underground, que é por natureza caótico e não-profissional, mas altamente criativo e disruptivo, e ao mercado médio, que está em plena expansão, e altamente profissionalizado. O teto desse mercado está sendo empurrado para cima por alguns artistas, e puxando consigo toda cena. O importante desse movimento é que a tão sonhada sustentabilidade fica cada vez mais palpável, não sendo mais necessário romper o mainstream para ter uma carreira relevante e lucrativa. É olhando para isso também que demos o passo de ir para um local maior, crescendo juntamente com a cena a que pertencemos.
– Bruno Lisboa é redator/colunista do O Poder do Resumão. Escreve no Scream & Yell desde 2014.