texto de Renan Guerra
fotos de Chico Castro
“Viver é urgente” reforçava uma das mais impactantes performances do Teatro da Pombagira, quando, numa edição do Festival MixBrasil, os atores performaram no meio do Teatro Adoniran Barbosa, do CCSP, enquanto tatuadores gravavam na pele da plateia a frase-chave citada inicialmente. Naquele dia, a performance celebrava a vida de Marcelo Denny, fundador do grupo e que faleceu em 2020. Marcelo D’Avilla, seu parceiro criativo, deu sequência à proposta combativa do grupo e apresentou espetáculos intensos, como o fervilhante “Caixa Preta”, de 2022. Considerando esse cenário, se espera o mesmo tipo de virulência e intensidade quando se anuncia qualquer espetáculo relacionado ao grupo, como, por exemplo, o solo “Via Crucis”, de D’Avilla. O artista faz um movimento interessante de pesquisa – algo já experimentado por Roxa, outra integrante do grupo – e essa nova narrativa do diretor, ator e performer é um convite para uma jornada extremamente pessoal.
Ao adentrarmos o palco-arena do Teatro Mars – espaço simbólico do teatro alternativo de São Paulo e que se tornou espécie de casa do Teatro da Pombagira –, somos convidados por D’Avilla a passar por uma porta, apenas uma porta solta naquele espaço de pé direito imenso. Essa porta é, simbolicamente, a nossa entrada no lar do artista e, a partir dali, vivenciaremos experiências bastante íntimas. O espetáculo é composto de uma sequência de números, cada um marcado por uma canção, que está traduzida em grandes cartazes escritos à mão no fundo do espaço cênico – são canções que vão do pop radiofônico aos grandes hinos de fossa, passando por nomes como Elis Regina, Evanescence, Alejandro Sanz e Backstreet Boys; deu pra entender a salada mista, né? Nestes números, D’Avilla constrói as reminiscências deste lar: uma mesa posta, cadeiras à espera de alguém, uma cama de casal com um lado vazio, estruturas que reforçam uma ausência.
Na primeira metade, o artista incorpora, ao seu modo, uma narrativa que se assemelha à mulher protagonista de “A Voz Humana”, de Jean Cocteau, que, em seu lar, conversa com seu amado ao telefone e vislumbra ainda a possibilidade de seu retorno. Se no início do espetáculo há essa possibilidade de retorno do ser amado, em um segundo momento partimos para a dor da solidão, a falta excruciante, para enfim vivenciarmos o expurgo, o retorno de toda a potência da liberdade. E, se na base, temos uma narrativa que fala de amor (ou do fim deste), no palco seremos levados por uma experiência física que reverbera as práticas já conhecidas do Teatro da Pombagira. Na frente do público, D’Avilla se despe física e metaforicamente, colocando seu corpo em experiências intensas que, por mais ensaiadas e programadas que sejam, ainda funcionam como experimentos de seus limites e de sua força.
Contorcionismos se unem à violência da destruição de objetos; a feitura culinária de um coração se conecta ao ato solitário dos cigarros acesos ao lado do álcool; a lavagem purificadora de seu corpo se opõe ao fogo jogado nas roupas do antigo amado. Em um dos momentos mais fortes do espetáculo, D’Avilla se enrola em correntes que são cadeadas e que só podem ser abertas com chaves entregues ao público, numa narrativa performática que clama pela não-passividade da plateia. É um jogo complexo, em que a intimidade e a vulnerabilidade caminham num espaço limítrofe entre o perigo e o descontrole. Diferente de outros espetáculos do grupo, em que as violências externas (sociais, políticas e econômicas) movimentavam a reatividade dos personagens, aqui o que movimenta o espetáculo é a complexidade sentimental de seu protagonista, sua dificuldade em manejar suas vulnerabilidades e sua entrega total a essa experiência amorosa.
“Via Crucis” é uma história de amor – sim, do fim do amor, mas ainda assim de amor. É um personagem em sua jornada de lidar com a solidão, com a perda, com os erros e, por isso mesmo, uma jornada de intensa entrega e complexidade. Ao final, somos novamente convidados a sair pela porta localizada na boca de cena. Uma porta solta, sem paredes, mas que pela mágica do teatro, se torna o nosso convite a relembrar que estávamos mergulhados no universo particular do personagem-artista. Não sabemos até que ponto tudo ali é biográfico, até que ponto a performance dialoga (ou emerge) do real? De todo modo, saímos bagunçados pela experiência estranha e interessante de vasculhar o íntimo de alguém machucado.
Íntimo e sincero, o espetáculo-performance “Via Crucis” se engrandece essencialmente por ser um convite de D’Avilla para que o público adentre nesse universo e se movimente a partir de suas feridas, incertezas e incompletudes. E nisso, terminamos mexidos e ainda cheios de questões.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.