texto de Davi Caro
A narrativa do rock alternativo pós-1991 diz que o lançamento de “Nevermind”, do Nirvana, sepultou o então já esgotado reinado do hair metal que havia dominado as paradas e a MTV no fim dos anos 1980 (ainda que bandas como o Guns N’ Roses mantivessem altos níveis de sucesso e reconhecimento). No entanto, numa espécie de efeito adverso, a ascensão das bandas de Seattle e similares acabou por relegar ao quase esquecimento um sem-número de bandas alternativas que vieram antes. Quase todas as pessoas atentas ao desenvolvimento do gênero ao longo das últimas três décadas conhecem de cor a letra de “Jeremy”, ainda que poucos se lembrem de grupos como Hoodoo Gurus. E por mais que algumas destas mesmas formações tenham triunfado, como o R.E.M. ou o Sonic Youth (que saíram da independência e assinaram com grandes gravadoras, a primeira em 1987, a segunda em 1990), é fato que muitos dos seus contemporâneos acabaram ofuscados na tomada de poder do grunge e da dita Alternative Nation, mesmo tendo tido trajetórias muito parecidas. Como é o caso do Hüsker Dü.
Formado em 1979 na cidade de St. Paul, Minessota, o Hüsker Dü (com os tremas) se firmou como um dos principais nomes de sua geração, desde suas origens no hardcore punk de contemporâneos como Black Flag, Minutemen e Circle Jerks, até uma maturação sonora que os levou a flertar com a psicodelia sessentista e melodias a-lá-Beatles, que os converteram em uma banda de grande influência nos anos seguintes. Formado por Bob Mould (vocais e guitarra), Greg Norton (baixo) e Grant Hart (bateria e vocais), o grupo expandiu suas fronteiras tocando e viajando exaustivamente, com prodigiosas rotinas de álbum-turnê, e cometendo a ousadia máxima de deixar uma gravadora independente e migrar para uma major quando isto ainda era tido como um sacrilégio. Ao longo deste processo, construíram, até seu fim em 1987, um conjunto de obras que compreende sete álbuns de estúdio e alguns extras (como eps e álbuns ao vivo) que funcionam como um documento histórico das transformações pelas quais o próprio conceito de rock alternativo passaria, de suas origens adjacentes ao movimento punk, até as aspirações mais elaboradas que impulsionariam toda uma nova leva de bandas ao estrelato.
A importância do Hüsker Dü já foi reconhecida em várias instâncias: grupos como o Green Day já atribuíram ao trio o título de pioneiros, e Bob Mould inclusive já colaborou com outros músicos abertamente influenciados por sua antiga banda, como No Age e Foo Fighters – vale citar, inclusive, que o guitarrista foi um dos vários considerados para a posição de produtor em “Nevermind” (1991). Após o fim do grupo, os três seguiram jornadas muito diferentes, como o próprio Bob Mould contou ao Scream & Yell: “Acho que a mitologia sobre essa banda é bem maior do que a realidade (risos). Somos apenas pessoas que cresceram juntas, que tiveram uma banda por oito anos, e que no último ano e meio estavam indo em direções diferentes”: dessa forma, Grant Hart montou e desmontou a banda Nova Mob, com quem gravou alguns discos, e fez mais alguns trabalhos sozinho antes de falecer em 2016; Norton atuou como chef, e atualmente se apresenta com o grupo UltraBomb; e Mould se lançou primeiro como artista solo (numa carreira bem sucedida que já acumula cerca de 15 álbuns) e, além disso, ainda lançou dois discos à frente da também incrível banda Sugar, no início dos 1990. Hoje, mais de 40 anos após o lançamento do primeiro disco do grupo, o dom da perspectiva torna fácil enxergar o quão fundamental a existência do Hüsker Dü foi para os caminhos trilhados pelo rock ao longo dos últimos 30 anos. A fim de comemorar as quatro décadas de seu disco mais cultuado e importante, o que se segue é uma tentativa de elucidar a brilhância de uma das mais singulares trajetórias da história da chamada “música alternativa” (ou “boa música”, se preferir).
“Land Speed Record”/“Everything Falls Apart” (1983)
“Se os Ramones eram rápidos, e os Buzzcocks eram mais rápidos, e os Dickies eram ainda mais rápidos, isso significava que o Hüsker Dü tinha que ser a banda mais rápida do mundo”. São palavras de Bob Mould, em sua biografia “See a Little Light: A Memoir”, publicada em 2011. E os membros do Hüsker Dü não se afastariam tanto desta proposta ao longo de sua carreira – em nenhum outro momento, porém, esse ideal se faz tão presente quanto nos primeiros dois registros da banda em LP. Lançados pela gravadora SST (de propriedade de Greg Ginn, do Black Flag) em 1982 e 1983, respectivamente, “Land Speed Record” e “Everything Falls Apart” são os registros que melhor captam o som feito pelos três em seus anos iniciais. O primeiro foi gravado ao vivo em Minneapolis no ano de 1981, antecedendo qualquer gravação de estúdio. Com impressionantes 17 faixas e duração de menos de 27 minutos (!), “Land Speed Record” traz a crueza do hardcore intepretada por uma banda que em breve seria capaz de muito mais. As limitações de ter sido gravado em um dispositivo de 4 canais se faz presente ao longo da gravação inteira, o que faz do disco pouco recomendável para ouvidos menos acostumados (destaque para “Guns at My School” e “Bricklayer”, de Mould, e “Push the Button” de Hart). Já o segundo é uma transposição igualmente crua, porém preciosa da mesma ética musical dos três membros em estúdio. Produzido pelos músicos em parceria com o técnico residente Spot (recentemente falecido e homenageado por Mould), “Everything Falls Apart” é caos controlado, como uma bomba que pode explodir a qualquer momento, sem aviso. A abertura com “From the Gut”, com baterias marciais, riffs pesadíssimos e vocais berrados de Mould, e “Wheels”, furiosamente cantada por Grant Hart, são indicativos do período inicial da banda, energizada pelo consumo de anfetaminas. Outros destaques são a cover de “Sunshine Superman” (originalmente interpretada pelo cantor escocês Donovan) e a faixa-título – vale mencionar que o disco foi expandido quando de seu lançamento em CD, e reeditado como “Everything Falls Apart and More”, incluindo os dois primeiros singles (“Statues” e ”In a Free Land”) e uma gravação tosca de “Do You Remember?” (tradução do dinamarquês “Husker Du?” para o inglês).
Melhor(es) faixa(s): “From The Gut”, “Wheels”
Favorita: “Everything Falls Apart”
Nota: 7/10
“Zen Arcade” (1984)
Um pequeno passo para o Hüsker Dü, um salto gigante para toda a cena a qual a banda pertencia. A partir de seu segundo disco de estúdio, teria início um processo de amadurecimento sonoro que os elevaria ao status de ícones em meio aos fãs; uma cisão no processo de composição que provocaria divergências e conflitos internos, e que os levaria à sua separação; e um legado que faz frente a praticamente todos seus contemporâneos. “Zen Arcade” irrompeu no cenário constantemente crescente de música alternativa como uma explosão: Um disco conceitual, que conta a história de um jovem que foge de casa e de uma vida abusiva, e procura refúgio no exército, no amor, nas drogas e na religião, amparado em um repertório que vai de arroubos de energia punk (“Something I Learned Today”, “I’ll Never Forget You”, “Turn On the News”) até delicadas jóias acústicas (“Never Talking To You Again”), cacofonias desorientadoras (“Reoccurring Dreams”) e acenos à psicodelia (“Pink Turns to Blue”). São 23 faixas gravadas em takes únicos, onde percebe-se a vontade de seguir outros rumos: os berros escolhidos antes por Mould são descartados em favor de vocais menos abrasivos e uma visão mais clara em relação aos tópicos tratados; já Grant Hart (que assina cinco faixas, além de três com o vocalista e outras três escritas em conjunto) tem mais espaço para mostrar um lirismo bastante diferente do co-compositor, e brilha com vocais mais melódicos. Falando em melodias, inclusive, é importante destacar a presença do piano tocado pelo guitarrista e pelo baterista, respectivamente, em “Chartered Trips” e “Standing By The Sea”, em um sinal claro de querer romper com quaisquer amarras trazidas por serem uma banda originalmente punk. E mesmo assim, os bons momentos não se acabam: “What’s Going On” (com participação de Dez Cadena, do Black Flag), “Broken Home, Broken Heart”, “The Biggest Lie”, “Pride”… “Zen Arcade” é daqueles discos que são e serão discutidos por muitos anos. “Não estávamos necessariamente pensando algo como ‘Ah, esse disco vai mudar a música’ ou ‘Esse álbum vai influenciar muita gente no futuro’. Mas o fato de isso ter acontecido é incrível, um tanto incompreensível e algo pelo qual serei eternamente grato”, confidenciou o baixista Greg Norton em entrevista ao Scream & Yell. Mas tão importante quanto discutir “Zen Arcade” é escutar “Zen Arcade”, com ouvidos atentos e coração aberto.
Melhor(es) faixa(s): O álbum inteiro
Favorita(s): “Chartered Trips”, “Broken Home, Broken Heart”, “Never Talking to You Again”
Nota: 10/10
“New Day Rising” (1985)
Não havia mais volta para o Hüsker Dü. A trilha aberta em 1984 semearia influências que floresceriam nas novas composições, e a banda, por consequência, se destacaria pela forma como deixariam os limites auto-impostos do ideal punk para trás – quer dizer, apenas musicalmente: usando o formato tornado célebre pelo Black Flag, os três membros viajaram sem parar, cruzando os Estados Unidos e experimentando com novas texturas e estruturas musicais nos shows, onde muitas das canções de seu terceiro disco seriam testadas pela primeira vez. Com um som mais cristalino e um cuidado maior nas gravações (ainda que relativamente), “New Day Rising” deu seguimento ao crescimento criativo de Mould e Hart, especificamente, que já desenvolviam seus talentos próprios como compositores, ainda que conseguissem manter um bom nível de colaborações. Tão produtivos eram os ensaios e apresentações que o trabalho no álbum começou praticamente assim que “Zen Arcade” foi lançado. O número de faixas foi ligeiramente reduzido – 15 músicas – e a sonoridade mais trabalhada faz com que mesmo os maiores reflexos do ainda recente passado mais underground do trio fosse exibido no melhor estilo. Basta ouvir os riffs cortantes e ensolarados da clássica “Celebrated Summer” ou a galopante “I Apologize” para sentir a diferença na qualidade de gravação, que, embora ainda não se assemelhasse à resolução cristalina de grupos mainstream, como Bon Jovi, já representava um salto grande em termos de apelo. A variedade sonora já insinuada antes assume contornos mais distintos aqui, e em nenhuma outra canção o impulso pela experimentação e por novos arranjos fica tão claro quanto na indefectível “Books About UFOs”, entoada por Hart e enfeitada com uma bela linha de piano. Ainda que mais familiar, porém não menos intrigante, “Terms of Psychic Warfare” se utiliza de ritmos quebrados, quase jazz, naquele que talvez seja o ponto mais destoante do resto do repertório. “Folk Lore”, “Powerline” e o encerramento com “Plans I Make” alternam entre sonoridades mais esperadas pelos já dedicados fãs da banda e territórios ainda pouco explorados, estabelecendo assim a dualidade tomada para si pelos membros pelo resto de sua discografia. Um álbum sólido, que pode gerar estranheza à primeira audição e que só faz crescer no coração dos seguidores ao longo dos anos.
Melhor(es) faixa(s): “Books About UFOs”, “Celebrated Summer”, “New Day Rising”
Favorita: “Celebrated Summer”
Nota: 9/10
“Flip Your Wig” (1985)
Mesmo que se considere o ritmo frenético ao qual os contemporâneos do Hüsker Dü se dedicavam, ainda assim é impressionante observar o quão prolíficos os três conseguiam ser em seus momentos mais inspirados. Apenas nove meses após o lançamento de “New Day Rising”, já começando a chamar a atenção de grandes gravadoras e se sobressaindo em meio ao cast da SST, o trio saiu com “Flip Your Wig” em novembro de 1985. Com um repertório um pouco mais equilibrado (Hart e Mould escrevendo metade das canções cada), o desfile de clássicos continua: ainda que talvez menos consistente do que seu antecessor, não é possível ignorar que “Makes No Sense At All” (lançada como single, com a cover de “Love Is All Around” no lado B) faz por merecer o status de clássico indiscutível. “Private Plane” justifica a entrada de Mould no hall de melhores guitarristas de sua geração, escapando de clichês e juntando sua linguagem punk com arpejos característicos das bandas britânicas da mesma época; e a sequência Hart-Mould de “Green Eyes” e “Divide and Conquer” mostra a dupla, ainda que individualmente, em um de seus melhores momentos. Apesar de isso tudo, também vale dizer que algumas outras faixas podem soar um pouco mais dispersas: “The Baby Song” não chega aos pés de “Flexible Flyer”, da mesma maneira que a instrumental “The Wit and the Wisdom”, com suas microfonias e baterias abstratas, pode perder um pouco de força num álbum que ainda tem a faixa-título e a frenética “Every Everything” como destaques. A produção não se diferencia muito do disco anterior – os mais distraídos poderiam achar que se trata de repertórios registrados nas mesmas sessões de gravação (num processo que, pela primeira vez, ficou inteiramente sob controle de Bob e Grant); volumes altos e um pouco abafados podem soar estranhos a ouvidos mais acostumados, e o ataque sonoro perde um pouco com as limitações, mesmo que não tirem o brilho do disco em seus pontos mais interessantes.
Melhor(es) faixa(s): “Private Plane”, “Makes No Sense At All”, “Divide And Conquer”
Favorita: “Makes No Sense At All”
Nota: 8,5/10
“Candy Apple Grey” (1986)
Nos dias atuais, discussões como assinar contrato com uma grande gravadora podem não ter um quinto do impacto que geravam há pouco mais de três décadas, mas uma banda independente firmar um pacto com uma major poderia (e normalmente era) tido como alta traição no cenário (pós-)punk dos anos 1980. E não foi diferente quando o Hüsker Dü resolveu aceitar o convite para integrar o grupo de bandas administrado pelo gigante Warner Music Group. A megacorporação já tinha demonstrado interesse em lançar “Flip Your Wig” dentro do contrato, mas os três foram contra e defenderam soltar o álbum ainda pela SST como símbolo de respeito e gratidão. Na esteira de um trâmite inédito, onde uma banda independente assinava com uma gravadora mainstream retendo 100% do controle criativo, “Candy Apple Grey” chegou às mãos do público no primeiro semestre de 1986, com a dupla de compositores mais uma vez assumindo a produção. E a diferença entre o repertório do novo disco era latente: amplificada por uma maior inclusão de violões e um rompimento decidido da sonoridade que havia marcado seus trabalhos até então, a lista de canções se beneficia de mais clareza no som das baterias (onde se percebe pela primeira vez um singelo, mas caraterístico efeito de reverb) e um trabalho de captação de guitarras e baixos que parece vir de uma banda completamente diferente daquela que registrou “Everything Falls Apart”. As músicas são menos diretas, mais oblíquas e, muitas vezes, mais delicadas: por trás da parede de acordes de “Don’t Want to Know If You’re Lonely” estão alguns dos melhores versos já escritos pelo baterista Hart, que brilha também em “Sorry Somehow” e “Dead Set On Destruction”, talvez a que melhor pudesse estar nos discos anteriores do trio. Bob Mould, por sua vez, demonstra maturidade e esmero em medidas iguais, tanto nos gritos da rápida abertura “Crystal” quanto na delicadeza de “Hardly Getting Over It” e no power pop de “I Don’t Know For Sure”. A proposta aqui parece claramente a de canalizar as melhores canções escritas pela dupla, ainda que a participação de Norton continue mais marcada do que nos anteriores (as linhas de baixo de “Eiffel Tower High” figuram entre as melhores do grupo). O número de faixas diminuiu – 10 canções, contra 14 de “Flip Your Wig”, e uma reveladora, mesmo que sutil, predominância de Mould, que assina 6 faixas, contra 4 de Hart. É um disco mais coeso, ainda que com uma reputação menor em relação àquilo lançado antes e depois pelos três.
Melhor(es) faixa(s): “Hardly Getting Over It”, “I Don’t Know For Sure”, “Don’t Want To Know If You’re Lonely”
Favorita: “Don’t Want To Know If You’re Lonely”
Nota: 7,5/10
“Warehouse: Songs and Stories” (1987)
O que já era um período desafiador para o Hüsker Dü se tornou um pesadelo em doses homeopáticas: o abismo entre Mould, que lutava para exercer maior controle sobre os rumos do grupo, e Hart, que resistia aos interesses criativos do guitarrista e se afundava cada vez mais na heroína, finalmente chegou a um ponto irreversível. A luta por domínio das decisões do grupo e a discórdia produzida pelos embates frequentes é refletida de modo reluzente no último disco do grupo. Quase como um primo espiritual de “Zen Arcade”, “Warehouse: Songs and Stories” encapsula perfeitamente o nível de ambição (e rancor) que tomava conta da banda: um álbum duplo somando 20 canções, o derradeiro trabalho do trio é repleto de promessas infelizmente nunca cumpridas: ainda que debilitado pelo consumo de drogas, o potencial de Hart como compositor esteve poucas vezes tão evidenciado quanto na bela e psicodélica “She Floated Away” – outros grandes momentos do baterista são a dúbia “She’s a Woman (And Now He’s a Man)” e “Back From Somewhere”. O álbum, porém, é mais marcado pelas contribuições de Mould: a energética “These Important Years” soa como uma reflexão a respeito da própria trajetória da banda até aquele momento, ao mesmo tempo que “Standing in the Rain” e “Ice Cold Ice” são como visões de um futuro no qual o pop punk dominaria às ondas de rádio e a MTV. O melhor momento do tracklist, porém, não poderia ser outro: “Could You Be The One?” é o som das portas se abrindo para toda uma nova geração de bandas, com melodias assobiáveis, ritmos rápidos e ao mesmo tempo instantaneamente cativantes e uma letra que poderia ter saído de um disco do Big Star. Anos de perspectiva podem trazer mais razão à ideia de “Warehouse” como o Álbum Branco do Hüsker Dü. Greg Norton, apesar de creditado, não contribuiu para determinadas faixas do disco, onde suas linhas foram apagadas e regravadas pelo autor (“Charity, Chastity, Prudence and Hope”, de Hart, sendo um destes casos). O baterista, inclusive, foi franco ao classificar o disco, em retrospecto, como bom, mas que poderia ter sido um álbum simples e tido mais impacto. Assim como o citado disco dos garotos de Liverpool, “Warehouse: Songs and Stories” pode soar como confuso e longo demais em um primeiro contato, ainda que as músicas menos notáveis não deixem de ser decisivas para a construção da obra como um todo. Barulhento, melódico, intrigante e curioso, é um álbum à altura da jornada da banda que o concebeu.
Melhor(es) faixa(s): “Could You Be The One?”, “She Floated Away”
Favorita: “Standing in the Rain”
Nota: 9/10
Eps, Singles e Álbuns ao vivo
Como se mostra uma tradição em meio à bandas punk (particularmente as contemporâneas ao Hüsker Dü), muitos dos grandes tesouros da discografia do trio estão concentrados não em seus discos de estúdio, mas nas obras que formam o universo expandido de sua discografia. O primeiro destes trabalhos paralelos inclusive é fundamental para a evolução sonora que se tornaria marca registrada da banda: gravado no fim de 1982 e lançado em 1983, o EP “Metal Circus” marca o primeiro passo, ainda que mais reticente, para longe da brutalidade do hardcore de “Land Speed Record” e “Everything Falls Apart” e sinaliza os novos elementos que fariam parte da paleta de sons do grupo a partir de “Zen Arcade” (destaques especiais para a mórbida “Diane” e a propulsiva “It’s Not Funny Anymore”, de Grant, e “Deadly Skies” de Bob). Já em matéria de singles, salvo por ocasionais inclusões de faixas ao vivo, a maioria sempre prezou por destacar faixas provenientes de álbums, com uma notável exceção: a incrível versão feita para a clássica “Eight Miles High”, dos Byrds, e lançada pouco antes de “Zen Arcade” – tal versão foi determinante para que o trio reivindicasse maior reputação no Reino Unido, por onde passariam dali em breve.
No que diz respeito à material ao vivo, existem somente dois álbuns oficialmente lançados até o momento: “The Living End” (1994) captura o Hüsker Dü na turnê de “Warehouse”, no segundo semestre de 1987, e, com boa captação e retratando um dos momentos mais musicalmente ricos da carreira da banda, pode funcionar como uma boa porta de entrada para os menos familiarizados (Mould, por sua vez, já disse nunca ter escutado o disco). Mais recentemente, “Tonite Longhorn” (2023) chegou às plataformas de streaming, compilando três sets gravados ao vivo entre Julho de 1979 e Setembro de 1980 no clube Jay’s Longhorn de Minneapolis, e que ajuda a tomar perspectiva da evolução sonora do trio ao longo de seu biênio formativo.
A discografia do grupo, seja na fase com a SST ou em seus dias na Warner, nunca foi reeditada apesar da considerável demanda (e olha que o catálogo do Hüsker Dü poderia se beneficiar muito de uma remasterização). Porém, um lançamento recente envolvendo a banda também terminou sendo um dos mais interessantes e intrigantes: em 2017, o selo americano The Numero Group (com um longo trabalho de recuperação e relançamento de álbuns, alguns nunca lançados, em edições caprichadíssimas) soltou a massiva caixa “Savage Young Dü” (abaixo), produto de um verdadeiro processo arqueológico: gravações de estúdio e ao vivo se misturam a demos numa coletânea de 69 canções, sendo 47 inéditas. Além de trazer todas as faixas de “Everything Falls Apart”, a compilação também traz uma fantástica gravação “alternativa” de “Land Speed Record”, com o mesmo repertório, gravado duas semanas após a apresentação que gerou o disco.
Além da boa recepção por parte da crítica especializada, “Savage” também ocasionou outros dois lançamentos “irmãos”: o vinil de 7 polegadas “Extra Circus” (que traz as faixas que ficaram de fora de “Metal Circus”, registradas na virada de 1982 para 1983) em edição limitada, e “Do You Remember?: A Podcast about Hüsker Dü”, que faz uma retrospectiva da carreira da banda em cinco episódios e conta com depoimentos dos três integrantes, mais colegas e colaboradores, no que também é o último registro de Grant Hart antes de seu falecimento. Disponível apenas na plataforma da Apple, a série é uma audiobiografia onde os pontos de vista muitas vezes discordantes dos três membros são elucidados, e que abre ao ouvinte uma janela para o processos de nascimento, desenvolvimento, amadurecimento e de inevitável finalidade em uma das mais ricas discografias da história do rock alternativo – e de uma de suas bandas mais seminais.
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.
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