texto de Renan Guerra
Neste ano de 2024 duas adaptações de “Grande Sertão: Veredas” (1956), de Guimarães Rosa, chegaram aos cinemas brasileiros e é bastante natural que se compare as duas obras, não só por seu material base, mas também porque as duas têm seus cruzamentos. Guimarães Rosa é um escritor considerado quase “infilmável”, especialmente quando falamos de “Grande Sertão”, com sua narrativa complexa, sua linguagem única e seus múltiplos personagens. Duas vezes a história foi filmada seguindo uma perspectiva bastante fiel à narrativa de Guimarães: em 1965, na adaptação cinematográfica de Renato Santos Pereira e Geraldo Santos Pereira e na minissérie televisiva de 1985, de Walter Avancini. Na nova adaptação que chegou às telas em junho sob direção de Guel Arraes, a história de Riobaldo e Diadorim foi relida numa perspectiva pós-apocalíptica, com Caio Blat e Luisa Arraes como protagonistas. Proposta extremamente ousada, com roteiro assinado por Arraes ao lado de Jorge Furtado, o filme dividiu opiniões da crítica, que foi de textos elogiosos a textos destruidores – como o da revista Veja, que listou motivos para se fugir (sic) da versão de Guel Arraes.
Fato é que o “Grande Sertão” (2024) de Guel Arraes foi um fracasso nos cinemas. Com intensa divulgação da Globo Filmes, com direito a chamadas constantes nas telas da Globo e matéria no Fantástico, o filme foi lançado com a pompa de uma grande estreia, com 400 salas pelo país, porém fechou o mês de junho com pouco mais de 36 mil espectadores e logo em seguida já saiu de cartaz. Agora, também com co-produção Globo Filmes, chega aos cinemas “O Diabo na Rua no Meio do Redemunho” (2024), adaptação dirigida por Bia Lessa, em lançamento bem, mas bem menor. O filme terá um lançamento diferenciado nos cinemas a partir do dia 15 de agosto – com distribuição da Filmes do Estação, dentro do projeto Mãos à Obra, que é apresentado pelo Instituto Cultural Vale através da Lei Federal de incentivo à Cultura – nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, São Luís, Fortaleza, Salvador e Porto Alegre, onde serão promovidos encontros com a diretora e o elenco e serão desenvolvidas diversas atividades em torno do universo de criação do filme, como palestras, debates, a apresentação do making of da peça dirigida por Bia Lessa, e a exibição do documentário premiado “Onde Nascem as Ideias”, de Carolina Sá.
Tendo Guel Arraes como um de seus produtores associados, “O Diabo na Rua no Meio do Redemunho” traz também no elenco Caio Blat e Luisa Arraes, por isso falamos anteriormente das inegáveis comparações entre as duas adaptações. Porém as similaridades acabam aí. O filme de Bia Lessa é um desdobramento de sua adaptação teatral da obra de Guimarães Rosa, que foi sucesso de crítica e público com seu formato único: a trama se desenrolava em uma espécie de gaiola de andaimes instalada nas áreas de convivência dos Sescs onde foi exibida. Em arquibancadas, o público recebia seus fones de ouvido para conferir a trilha sonora e viver uma experiência de quase três horas de duração. A peça e o filme são experimentos de Lessa em torno da obra de Guimarães Rosa e das diferentes linguagens possíveis para se contar uma história – esse processo experimental começou quando a artista fez uma exposição no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, com textos do autor.
Na tela, “O Diabo na Rua no Meio do Redemunho” é uma experiência estética única: em um fundo preto, com objetos de cena mínimos, somos transpostos para um diálogo direto com o nosso protagonista-narrador Riobaldo (Caio Blat). Toda a narrativa épica de Riobaldo, sua amizade-amor com Diadorim e as muitas guerras e batalhas que sua trupe de jagunços se envolve são contadas de forma não-linear, em construção narrativa que passeia no tempo, sempre em função da fluidez narrativa do próprio personagem. Para encenar tudo isso, temos figurinos minimalistas em preto e, como acompanhamento, adereços feitos com aqueles cobertores baratos de cor cinza, produzidos com restos de fibras da indústria têxtil e de garrafas plásticas descartadas. O próprio elenco ora interpreta seus personagens humanos, ora dá conta de interpretar os animais que constroem aquela cenografia do sertão, indo dos sapos aos ruminantes, além de também ajudar a construir o próprio cenário do ambiente, criando com o corpo o movimento dos rios, em performances físicas marcantes. Tudo isso é bem marcado por uma trilha que cria essa ambiência de sons e ruídos da natureza – os ruídos do ambiente dialogam de forma certeira com a trilha absolutamente arrebatadora de Egberto Gismonti e O Grivo. Destaca-se ainda o detalhe de que todas as falas são legendadas com fonte em tom forte de vermelho, uma escolha fundamental quando pensamos que a palavra em Guimarães Rosa ganha sentido e fluxo único, por isso as legendas ajudam o espectador a mergulhar de forma mais certeira nesse ritmo narrativo.
De primeira, pode se questionar essa forma de se filmar uma peça de teatro e transpassar isso para a tela – o que remete ai minimalismo cênico de “Dogville”, de Lars Von Trier. De todo modo, o filme de Bia cria seu próprio universo mítico, em que somos mergulhados nessa estética proposta pela artista, num fluxo tão contínuo que depois há até um estranhamento na hora de retornarmos para as dimensões do mundo real. E isso tudo é possível pela força criativa de Lessa, que entende a magnitude do texto que tem em mãos e não busca em nenhum momento ultrapassar ou suplantar a obra de Guimarães, mas sim criar diálogos, abrir possibilidades interpretativas, nos levando por essas veredas de forma única e certeira. Em “O Diabo na Rua no Meio do Redemunho” temos Caio Blat novamente como Riobaldo, e também Luisa Arraes como um jovem Riobaldo – a atriz, assim como muitos do elenco, se desdobra em diferentes personagens. Já Diadorim fica por conta de Luiza Lemmertz, em atuação completamente arrebatadora. Se as dúvidas apaixonadas e metafísicas de Riobaldo são assombrosamente encenadas por Caio Blat, em atuação completamente entregue, por outro lado temos Luiza Lemmertz criando um Diadorim cheio de nuances, com um olhar que cria compaixão, mas que esconde todo o mistério e a dor do segredo de sua personagem. O rosto de Luiza tem uma força cinematográfica que é absurdamente bem captada no filme de Lessa e que, de alguma forma singular, remete diretamente a forma como Lilian Lemmertz era filmada por Walter Hugo Khouri – Luiza é filha de Julia Lemmertz e neta de Lilian.
No final das contas, “O Diabo na Rua no Meio do Redemunho” é uma experiência sensorial muito forte que nos reconecta com a obra de Guimarães Rosa e que nos reforça o poder narrativo da língua portuguesa, que nos relembra a riqueza cultural do nosso país e que nos possibilita vislumbrar toda a criatividade de um Brasil outro, que se abre ao novo e ao diferente e que se deixa apaixonar pelos mistérios sem-gênero de Diadorim. Dito isso, este aqui é filme para se ver na tela grande do cinema, com alta qualidade de som e imagem, com a suspensão temporal que só o escuro do cinema propicia. Bia Lessa é artista fundamental do Brasil nos últimos quarenta anos e esse filme é só mais uma prova de sua inventividade e de sua capacidade única de convidar o espectador para o desconhecido.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.