texto de Davi Caro
Um pouco de perspectiva nunca é demais: quando “Deadpool 2” chegou aos cinemas, em um já remoto 2018, o Universo Cinematográfico Marvel (MCU, no original) passava por sua fase mais bombástica – o período que englobou os megalomaníacos longas “Guerra Infinita” e “Ultimato” (2019), as últimas produções dos Vingadores até o momento. Até então, a possibilidade de ver o já icônico personagem trazido às telas por Ryan Reynolds integrando a mesma narrativa compartilhada dos principais rivais de seu estúdio naqueles tempos (20th Century Fox) parecia, no mínimo, um sonho muito distante. Quase como uma realidade alternativa boa demais para ser real.
Mesmo a compra da Fox pelo império Disney, grande responsável por unificar conceitualmente os dois universos, jamais poderia servir como um indicativo do que viria. O anúncio da futura produção, que não apenas traria o alter ego do mercenário Wade Wilson sob a tutela do Marvel Studios, também prometeu o retorno de Hugh Jackman no papel que o eternizou, como Wolverine. Ninguém, claro, se esqueceu do antológico final dado a seu personagem, no surpreendente “Logan” (2017). Porém, em um momento no qual as possibilidades infinitas do Multiverso são a chave para todo filme de grande porte no gênero de super-heróis, trazer o maior dos X-Men de volta não deixava de ser uma possibilidade, embora também representasse um desafio que, a julgar pelos últimos lançamentos coordenados por Kevin Feige, talvez estivesse além das possibilidades atuais. Pouco importava que contasse com o aporte do diretor dos dois primeiros filmes do assassino tagarela, Shawn Levy.
As expectativas de um retorno aos bons tempos das adaptações da editora para os cinemas foram finalmente confrontadas com “Deadpool & Wolverine” (2024), que busca caminhar na corda bamba de fazer parte de um universo infinitamente maior do que aquele no qual seus protagonistas habitavam, ao mesmo tempo em que tenta reter o suficiente de suas características originais (das sangrentas cenas de ação ao desenfreado humor que cruza a quarta parede, interagindo com o espectador). Dizer que a união entre Levy, Reynolds e Jackman falha no segundo conceito seria um erro. Já no primeiro aspecto… é discutível.
O argumento inicial do filme chega a ser bem explicitado nos trailers, mesmo que muito do longa, surpreendentemente, não tenha sido revelado: atravessando um período de crise, no qual busca se reafirmar (ou “significar algo”, como o próprio diz), Wade abandonou a identidade de Deadpool nos seis anos desde sua viagem pelo Multiverso, com a qual concluiu seu segundo filme. Apesar de ainda desfrutar do convívio com seus amigos, em especial com a idosa cega Al (Leslie Uggams), o anti-herói se separou de sua amada, Vanessa (Morena Baccarin), e trabalha vendendo carros ao lado do amigo Peter (Rob Delaney). Sua existência já complexa se torna ainda mais complicada quando Wilson é capturado por oficiais da TVA (Time Variance Authority), organização extra-dimensional responsável por administrar e fazer a manutenção da dita “Linha do Tempo Sagrada” (conforme apresentado na série “Loki”, disponível em streaming via Disney+).
Os representantes trabalham sob o comando do agente Paradox (Matthew Macfayden), que o apresenta a uma proposta tentadora, mas dolorosa: começar a habitar o MCU, ou permanecer em sua própria realidade, cuja extinção é iminente graças ao sacrifício heróico da “âncora” de seu universo – o mutante Logan, cuja morte ao fim de seu último filme desestabilizou a linha temporal por inteiro. Deadpool vê, então, na chance de encontrar uma versão alternativa do lendário X-Men a chance de parar o processo de extinção de seu lar, seja quais forem os desafios que se coloquem diante deles, individualmente ou como um time. Mas é claro que uma dupla de tamanha importância deve ter um antagonista à altura, na forma da telepata Cassandra Nova (Emma Corrin), a irmã perdida de Charles Xavier, com potencial tão intimidador quanto o do líder da equipe de mutantes.
Tiremos o óbvio do caminho primeiro: a química entre a tagarelice descontrolada do Deadpool de Reynolds, que não se perde em relação às duas investidas anteriores nos cinemas, encontra sua contraparte perfeita na interpretação sisuda, e traumática quase a níveis caricaturais, trazida por Jackman. Seu Wolverine, embora carregue características indissociáveis das representações anteriores, fosse como co-protagonista ou como personagem-título, traz consigo dessa vez uma espécie de síndrome derrotista que ecoa com perfeição, ainda que checando algumas caixinhas do bingo dos clichês, as diferenças narrativas entre esta versão específica do mutante e as outras participações em filmes anteriores. Combinadas, as duas atuações são um show de comprometimento com papéis que, finalmente, são dignos das encarnações mais clássicas dos quadrinhos.
Aliás, falando em quadrinhos: o roteiro é repleto de referências, em sua grande maioria bem construídas, ao passado de ambos personagens no formato em que apareceram primeiro. A presença de easter eggs, chega, inclusive, a sobrecarregar em determinados momentos, ao ponto de algumas passagens soarem mais artificiais do que outras. Outro elemento posto a serviço da construção da história, driblando o fan service forçado, tem a ver com as aparições surpresa: acaba valendo a pena evitar spoilers ao máximo, mesmo que seja para ter maior aproveitamento delas, que vão do surpreendente ao bestificante com (em sua maioria) um senso de humor capaz de agradar tanto aos filmes anteriores de Deadpool quanto os que achavam os pioneiros longas iniciais dos X-Men sérios demais para seu próprio bem.
Ainda que o foco nos dois personagens centrais passe longe de ser uma surpresa, pouco desenvolvimento resta para os coadjuvantes vistos originalmente. À exceção do bonachão Peter vivido por Rob Delaney, ou da ranzinza Al de Leslie Uggams, quase ninguém se salva, restrito a breves passagens de diálogos – que chegam a servir como escada para as piadas do assassino piadista e suas quebras de quarta parede. Nos novos nomes a integrarem o elenco, porém, Emma Corrin se sobressai ao trazer uma faceta empática, mesmo que ainda maquiavélica, de Cassandra Nova, ao passo que Matthew Macfayden se utiliza de sua interpretação propositalmente exagerada e cheia de maneirismos para trazer à vida um personagem que se leva a sério demais, ao ponto de se tornar um alívio cômico quase involuntário. Em grande parte, funciona, e bem.
O grande problema de “Deadpool & Wolverine” está, de fato, na relação entre a direção de Shawn Levy (que também assina o roteiro) e a promessa, há muito citada aos quatro ventos, da tão sonhada integração das duas figuras homônimas ao universo compartilhado Marvel. Embora pontuado por passagens eletrizantes e momentos que fazem valer a experiência – especialmente para aqueles que vêm acompanhando as aventuras dos mutantes nos quadrinhos em suas facetas mais sangrentas e insanas (e embalados, aqui, por uma trilha sonora descarada em seu valor nostálgico) – a narrativa empregada aqui pode, em segunda análise, se mostrar redundante e pouco conclusiva. Inúmeras pessoas devem discorrer entre os teóricos buracos de roteiro (e são, pelo menos, alguns), muito embora estes sejam facilmente remediáveis com uma dose moderada de suspensão de descrença.
É discutível assumir que “Deadpool & Wolverine” seja, de fato, o melhor filme da Marvel desde “Ultimato”; tampouco parece justo comparar este a qualquer outra produção lançada pelos estúdios desde então, com filmes e séries que, salvo poucas exceções (como “Homem Aranha: Sem Volta Para Casa”, de 2021) ficam entre o facilmente esquecível e o risível e ridículo. A dedicação da equipe envolvida, no entanto, é inegável, e fica muito além do que detratores e céticos poderiam imaginar. Ainda assim, o que deveria funcionar como uma introdução de carismáticas, lendárias e heroicas figuras ao Marvel Studios de uma vez por todas acaba com um gosto de eulogia pelas antigas produções da Fox, bem como a tempos que, saudosismo à parte, não devem voltar mais.
Na posição de único filme prometido pela produtora em 2024, “Deadpool & Wolverine” pode parecer previsível, insípido e francamente longe de ser a produção responsável por salvar a marca mais rentável do cinema blockbuster atual da falência criativa. A maior virtude deste novo longa, entretanto, se mantém a mesma vista nos lançamentos anteriores: provar que um bom filme de super heróis pode, sim, funcionar sem se levar tão a sério. Ao mesmo tempo em que acena, mesmo que levemente, a um futuro uma vez mais repleto de promessas megalomaníacas e intrigantes, “Deadpool & Wolverine” mostra que pode, afinal, existir mais virtude em rir da própria nostalgia do que em mirar adiante e perder sua própria identidade no processo.
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.