entrevista de Bruno Moraes
fotos de Ivana Cassuli
Assistir a um show de Jesus Lumma é uma experiência com poucos paralelos, uma vez que a artista maranhense leva ao palco um misto de discussão política, consciência social e muita energia “rebolativa”. A autointitulada “arteira cyberafetuosa” trata de assuntos extremamente urgentes como o colapso climático, a violência cultural contra populações estigmatizadas e a acelerada vida na pós-modernidade com um bom humor que, embora às vezes seja irônico, tem também muita sinceridade e alegria.
Com uma música que transita entre o pop e o brega, Lumma traz leveza ao conteúdo com potencial de ser muito denso, ofertando ao público um modelo muito particular de catarse, que faz pensar sem o peso emocional que pode acompanhar o ato de encarar verdades duras. Após seu show no Psicodália 2024, Jesus cedeu uma entrevista à Scream & Yell, na qual falou sobre sua linhagem circense, sobre a arte e sobre o poder do humor para falar sobre assuntos necessários e complexos.
Queria começar te perguntando: você é de família circense?
Circense. Os meus avós tiveram doze filhos no circo. Eu sou filha da mais nova. Eu já nasci fora, mas a minha família toda veio com essa bagagem circense e cresci nessa atmosfera. E não tem como não absorver, né? Meu avô era palhaço, mágico, trapezista, malabarista, equilibrista… Minha avó era equilibrista, trapezista, malabarista, domadora de bichos, assistente de mágico, contorcionista e cabelo de aço. Por aí vai. E eles que foram meus principais tutores e cuidadores. Então absorvi muito desse humor, de usar o humor para falar coisas necessárias… Pra provocar sorrisos, mas pra provocar reflexões também.
Isso aparece tanto na estética do seu show, da sua energia, e também nessa mensagem e nessa vivência de liberdade. Você exala liberdade. Não é algo que é só a artista no palco fazendo o show dela, mas dá para ver que é algo muito presente na sua filosofia de vida.
É! É preciso ter fé para desacreditar. É preciso ter muita fé para se colocar num lugar onde a liberdade está atrelada àquilo que você vive, e não àquilo que as pessoas decidem sobre o que é a sua vivência, o seu ser, o seu agir. No palco e nas músicas, só deixo fluir essa vontade que trago do dia-a-dia, de viver o que penso, de sentir sem reprimir meu próprio sentimento. A liberdade está num espectro muito pessoal também. Para outras pessoas, o que para mim é liberdade para elas é palhaçada. E o que para elas é liberdade para mim é palhaçada também! Eu olho e falo: “Que tipo de liberdade é essa? Por qual liberdade a gente está lutando?” E também trago essa pauta de diversidade. Porque acho que existem liberdades no plural. E a gente esquece disso. Sejamos livres no plural. Para viver enredos e histórias de vida peculiares, singulares e únicas. Cada um assumindo a sua própria loucura.
Lindo! Não deixar dizerem, como na sua música, se a gente pode ou não ser normático. E o que é esse normático, né?
O que é? Quem decidiu o que é normático, sabe? E se existe o normático e se a gente precisa andar por ele, que tal criar novos normáticos? A música, a arte e a criatividade flutuam nesse meio nos trazendo, nos enchendo da possibilidade de criar. Gosto muito de poder levar para o palco essa perspectiva. Precisamos criar novas normatividades. Ou simplesmente abandonar, criar novos enredos. Onde a norma é uma coisa que ficou num passado e não precisa ser mais imposta, mas aderida por quem quiser. Porque há espaço pra isso também!
O planeta é tão grande, com tanta gente. Não precisaria ninguém se sentir de fora!
O planeta tem tanto espaço. Dá pra cada um ficar no seu cantinho. Sem se incomodar.
Em compensação, falando de planeta… Tem uma frase que acho incrível do Ailton Krenak, em que ele fala sobre a gente viver numa sociedade hoje que trabalha a serviço de uma máquina de comer o mundo. E você fala disso também na sua música. Sobre o fim do mundo chegando e a gente tonto, desorientado!
Acho que nós somos distraídes mesmo! Nós estamos dentro de uma configuração social que nos programou para nos distrair com determinadas coisas e nos afastar de pautas que são indispensáveis à vida. Não é nem à sociedade, estamos falando de nosso planeta Terra saindo de um holoceno, de uma estabilidade de clima para um antropoceno, onde o ser humano começa a interferir no funcionamento de um planeta inteiro. E no meio desse caos e dessa emergência climática, nós estamos preocupades com o look da diva X que não foi legal em tal programa. Ou com a pessoa Y do reality-show Z. Ou com sei lá mais o quê. Inúmeras futilidades, inúmeras superficialidades que nem se comparam às urgências que a gente está tendo em relação ao mundo. E o que o Krenak fala é exatamente um fenômeno que vem de um pensamento colonizador, escravocrata. Que subverte a nossa conexão com a vida, com a natureza e nos coloca para um lugar de autodestruição. De suicídio coletivo. E, enquanto isso, a gente se entorpece com estímulos vários. Dos views aos entorpecentes de variados tipos. A arte tem essa primazia de poder abordar isso que é tão grave e tão assustador de uma forma palatável. E, ao mesmo tempo, incômoda. Porque, apesar de ser palatável e estar ali… eu tô cantando “o fim do mundo chegou” e está todo mundo dançando. Aquilo ali está sendo dito, sabe? “Compra, consome e agita! #nãoTôNemAí”. As pessoas se perdem nas narrativas. Elas não querem saber o que está por trás dos projetos ou quais são os interesses das coisas que estão acontecendo. Elas querem viver esses estímulos e prazeres momentâneos, muitas vezes, sem nenhuma responsabilidade. E é culpa delas? Não! É um projeto de quem se beneficia disso. E quem se beneficia disso é o perfil que a gente já conhece: Branco, cis, hétero, do poder… Então acho que a música nos traz essa possibilidade de questionar isso. De afrontar sem confrontar. Sem partir para a briga, mas mostrando a realidade.
E isso é outra coisa que me contagiou muito no seu show: o fato de que muitas vezes, quando a gente vê ume artiste que é uma pessoa que faz um som que é catártico, isso muitas vezes vem com um peso. E você está comprometida com uma revolução na qual a gente pode dançar!
Exatamente. Eu digo que meu show é afetivamente potente, socialmente crítico e altamente rebolante. Geralmente falo isso quando me perguntam como é o meu show. Porque acho que a gente também não tem tempo de estar se lamentando. Nós precisamos, de fato, entender a linha tênue entre aproveitar o tempo que nós temos em um mundo prestes a entrar em colapso com assumir a nossa responsabilidade. Rebolar com uma mão no bumbum e a outra na consciência. Porque é urgente! Urgente que os povos originários não sejam mortos. Urgente que a comunidade LGBTQIAPN+ possa viver com uma expectativa de vida acima de 34 anos. É urgente que o planeta seja prioridade nas nossas narrativas, sabe? Isso é urgente. E todas as outras narrativas, do que é sucesso, do que é realização… Isso a gente pode deixar para depois que a gente conseguir, e se a gente conseguir voltar um pouco o impacto que a gente teve sobre o planeta. Tanto no sentido ambiental quanto no sentido social, psicológico, psicoemocional.
E você vê no Psicodália, nesses pequenos focos de juntar pessoas que estão interessadas e motivadas com isso como sendo um dos muitos caminhos que a gente precisa tomar paralelamente, como sociedade?
Hoje estive falando com uma galera aqui sobre o quanto o Psicodália tem uma característica de mostrar uma possibilidade de mundo para as pessoas. Achei um absurdo, por exemplo, as famílias com adolescentes e crianças não estarem aqui. Porque o que eu observei durante o dia inteiro foram pessoas se divertindo no rio, fazendo arte, trocando ideia. Não tem violência. É arte, lazer, entretenimento também… Mas é também um cuidado com os nossos resíduos, é um cuidado com as equipes, é um cuidado com os artistas. Um cuidado que é visível em todos os lugares. E eu acho que um evento como esse tem a possibilidade de mostrar que a gente pode viver uma sociedade afetiva, que se cuida. Que se diverte e se alegra, mas que se cuida. Com responsabilidade também.
Bruno Moraes: Nossa, que incrível! Muito obrigado por essa entrevista. Acho que eu poderia ficar uma tarde inteira conversando com você, mas…
Mas eu tô com fome! (risos). Eu que agradeço!
– Bruno de Sousa Moraes migrou das ciências biológicas para a comunicação depois de um curso de jornalismo científico. Desde então, publica matérias sobre ecologia e conservação da biodiversidade, e está se arriscando pelo jornalismo musical.