texto de Bruno Moraes
fotos de Ivana Cassuli
vídeos: Marcelo Borges (shows) e Rodinei Silveira (depoimentos)
DIA 1 – 9 de fevereiro de 2024 – Sexta-feira
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Após um hiato de quatro anos, o Festival Psicodália retornou às atividades no Carnaval de 2024. Em uma edição histórica, não apenas por configurar um retorno desta grande festa, mas também por ser a inauguração de um novo espaço, o Psicodália manteve sua tradicional mistura entre música, oficinas culturais, cinema, campings e consciência ecológica, apesar das ações do poder público terem descaracterizado o caráter familiar pelo qual o festival é conhecido.
Além da mudança de endereço, do município de Rio Negrinho (SC), onde haviam ocorrido as últimas edições, para Rio Rufino, pequeno município na Serra Catarinense, o retorno do Psicodália foi marcado por mudanças menos voluntárias: a menos de uma semana do início do Festival, foi divulgado o resultado de análise de um recurso movido pelo Ministério Público de Santa Catarina, restringindo a participação de menores de 16 anos no evento mesmo acompanhados de seus responsáveis.
Sem tempo hábil para recorrer, a organização se viu obrigada a reembolsar as famílias que já haviam se planejado para estar no festival, visto que as atividades de recreação infantil, voltadas a estimular um convívio saudável com outras crianças e com o mundo natural, já são uma marca histórica de edições passadas do Psicodália. Os comentários de mães, pais e responsáveis que tiveram de mudar os planos de Carnaval de última hora na publicação do MPSC no Instagram ilustram bem a sensação de que a decisão fere os direitos das famílias de decidirem quais ambientes são propícios a um desenvolvimento harmônico de suas crianças e adolescentes.
O Scream & Yell esteve presente nesta edição do festival com uma equipe de quatro jornalistas. Nesta primeira parte, você poderá saber um pouco mais sobre o que rolou no Psicodália 2024, dos palcos Lunar e da Rádio a outras atividades culturais diversas, e o manejo de resíduos e conscientização ecológica.
Caravanas, atrasos e cães farejadores
O festival se iniciava na sexta-feira, 09/02. Para quem, como eu e minha família, estava a três estados de distância, isso significava pegar folgas no trabalho, sair de casa antes do sol e dirigir um mínimo de 12 horas até Rio Rufino. Esta previsão foi aumentada, além do trânsito típico do Carnaval, por um acidente no Contorno Leste de Curitiba, de modo a chegarmos após 17 horas de translado. Cansados e frustrados, descarregamos o carro ouvindo os minutos finais do show da banda mineira antirracista Black Pantera. Mais tarde, descobrimos que estávamos longe de ser os únicos a perder parte ou a totalidade do primeiro dia do festival: a entrada do público foi atrasada em mais de quatro horas pelo somatório de problemas técnicos com internet para cadastramento de ingressos e a demora em uma liberação do Corpo de Bombeiros, embora a organização do festival afirme que já estava há mais de um mês garantindo as adaptações solicitadas pela instituição para concessão dos alvarás necessários.
Klauss Pereira, um dos organizadores do Psicodália, conversou com o Scream & Yell e explicou esta confluência de dificuldades que ocorreram no primeiro dia. “A gente teve muitos desafios esse ano, muito mais do que em todas as outras edições. Para começar, essa é uma fazenda totalmente nova, que não tinha estrutura para receber um público de mais de duas mil pessoas. Tinha alguns postes de iluminação, algumas ruazinhas e uns poucos banheiros, ainda a finalizar. Não tinha uma central de abastecimento de água, rede elétrica trifásica… E além desses desafios normais, nós passamos também por alguns desafios institucionais”, conta ele. “Em vinte anos de Psicodália, nós não passamos por nada parecido. Essa questão do Ministério Público, o nível de exigência dos bombeiros para liberar a realização de um evento em espaço aberto. Muitas das pessoas que trabalham conosco e estão acostumadas a lidar com eventos disseram que nunca viram um nível de exigência desses, foi desafiador.”
“Nós sempre fizemos questão de respeitar todos os prazos para liberação de todas as permissões e alvarás. Até para termos tempo de cumprir todas as adequações solicitadas. O que é normal, para todo e qualquer evento no Brasil. Quando vieram fazer a visita, foram maravilhosos, super gentis, super atenciosos. Achamos que seria algo mais simples, mas quando vieram as exigências, foi muita coisa. Mas tudo bem, corremos para cumprir. E houve várias idas e vindas de adequações, a gente correndo para cumprir com tudo. Quando deu meio-dia da sexta-feira, nós já havíamos cumprido todas as exigências. Ainda assim, o alvará dos bombeiros só saiu às 16h. Com isso, quem já havia chegado meio-dia teve de ficar horas esperando no sol, e nós não podíamos liberar todo mundo para entrar e estacionar de uma vez, porque a via só permite a passagem de um veículo por vez. Então se acontecesse qualquer emergência, não poderia estar tudo bloqueado, impedindo passagem de uma ambulância, por exemplo. Para piorar, a internet começou a dar problema, e essa é uma parte na qual a gente tem de se desculpar com o público. Porque acrescentou ainda mais atraso para que todo mundo tivesse os ingressos validados, contatos de emergência registrados e tudo mais. É um ponto que teremos de melhorar para as próximas edições.”
Outra surpresa esperava quem estava preso no sol esperando as liberações para poder acessar o espaço de realização do Psicodália. Uma blitz policial, acompanhada de cães farejadores, parava alguns dos ônibus e vans de caravanas. Naturalmente, algumas pessoas que se preparam para curtir o carnaval — independente de ser em um festival como o Psicodália ou qualquer outro formato de comemoração da grande festa nacional — carregam consigo “itens de consumo” que podem levar a problemas institucionais. Não foi diferente na Serra Catarinense, em um festival que carrega orgulhosamente a psicodelia no nome há mais de 20 edições.
Klauss conta que o Festival começou para que houvesse um espaço para artistas locais tocarem seus sons autorias. “A maioria do cenário era de tocar covers em bares. Cover traz cliente e ninguém queria ouvir as músicas próprias da galera. Então o festival foi criado, a princípio, calcado em rock and roll autoral, com influência de anos 60 e 70. Brasuca e internacional. E com isso, naturalmente juntaram-se pessoas que já tinham uma visão de mundo particular e fora do padrão.”
Ele conta ainda que não foi idealizador do Psicodália. Começou trabalhando na parte da infraestrutura, martelando tábuas e lavando banheiros e curtindo a primeira edição e, logo depois, quis se tornar sócio por entender que a proposta do festival era compatível com a sua própria visão de mundo.
Comentando sobre ser a primeira edição do Psicodália na qual, por determinação do Judiciário de Santa Catarina, a programação voltada para o público infantil não pôde ser realizada, ele conta que “o festival sempre foi família! Com galera de diferentes faixas etárias, do pessoal mais coroa, meia idade, jovens, adolescentes, crianças. E ele foi sendo desenhado para cada vez atender melhor a esses vários públicos, com recreação, oficinas, teatros, filmes… E parece que o poder público entende que a nossa família é diferente de outras. Que as nossas crianças estariam em risco ao serem expostas a ouvir música e acampar. Mas várias outras manifestações culturais no Brasil não ofereceriam esse risco. Você vai a um rodeio, em outros eventos e tem crianças convivendo com adultos bebendo, música alta até tarde da noite. Fora que, a gente tem de respeitar outras culturas sempre, não podemos impor a nossa visão de mundo. Mas a meu ver, você perseguir um animal, laçar e derrubar ele no chão é uma forma de maltrato animal. A gente viu recentemente no Brasil o problema de adultos ensinando crianças a atirar, e a resposta do poder público não foi preventiva como no caso do Psicodália.” E completa seu desabafo:
“Então parece que pelo nosso estilo estético, nosso estilo de vida e nossas crenças: vamos procurar ser bons seres humanos, vamos cuidar do nosso planeta, apreciar arte e cultura e criar bem as crianças para que sejam seres humanos com pensamento crítico, ricos de cultura e preservem o mundo que elas vivem… Parece que essa família é algo que não pode. Para mim, isso não tem coerência. Eu não quero desrespeitar nenhuma instituição pública aqui, não é essa a questão. Mas eu não vejo coerência em permitir que crianças sejam expostas a situações que podem incentivar que elas se tornem mais violentas, e fazer uma diferenciação quanto à proposta do Psicodália.”
Terminamos de tirar as bagagens, barraca e gazebo do carro ao som da versão do Black Pantera para o clássico “A Carne”, de Seu Jorge, Marcelo Yuka e Ulisses Cappelette e consagrado inicialmente na voz de Elza Soares. O peso absurdo da letra tornou-se mais explícito na voz de Charles Gama e no arranjo pesado do trio Uberabense, apequenando o inconveniente de estarmos perdendo o primeiro dia de festival frente à seriedade da crítica sociorracial ali presente. A esperança de ver algum dos shows do primeiro dia se foi enquanto montávamos a barraca, ouvindo ao longe as guitarras, metais e a percussão de ritmo contagiante de Mundiá Carimbó, última apresentação do dia 09.
Muito pouco eu poderia falar sobre os shows do primeiro dia de Psicodália mas, por sorte, meus colegas de pauta estavam no local desde cedo, e conseguiram registrar artistas como o guineense Patche di Rima e, claro, o próprio Black Pantera. Amanhã seguimos com o dia 2… bastante agitado.
Saiba como foi o Dia 2 / Dia 3 / Dia 4 / Dia 5
– Bruno de Sousa Moraes migrou das ciências biológicas para a comunicação depois de um curso de jornalismo científico. Desde então, publica matérias sobre ecologia e conservação da biodiversidade, e está se arriscando pelo jornalismo musical.