entrevista por Leonardo Vinhas
O segundo álbum de Bruno Vinci, “Balançado” (2023), poderia trazer aquelas recomendações que vinham nas contracapas de vinis de rock nacional nos anos 1980: “ouça bem alto”. Ainda que apoiado no choro, seu “berço de origem” e maior referência”, “Balançado” é um disco suingado, encorpado e, ainda que não de uma forma dissonante, pesado.
Acompanhado de uma dupla percussiva bastante inventiva, Rafael Mota (bateria) e Fernando Miranda (atabaques), e tendo Paulo Novais como solista no bandolim de 10 cordas e na guitarra baiana, Vinci compõe e entrega a condução rítmica a partir de seu violão de sete cordas. Sem se deixar engessar pela reverência às tradições, Bruno e seus companheiros encontram novas soluções melódicas e harmônicas para os ritmos que os inspiraram, e o resultado é um dos discos mais interessantes da música brasileira nesse ano.
Bruno merece destaque pelo que faz, mas é também importante destacar o que não faz: não cai na armadilha fácil de emular formatos já reconhecíveis pelo público nem de repetir os clichês que vicejam no circuito da MPB instrumental. Também não há espaço para autoindulgência: as canções se resolvem antes do ego dos músicos tentarem qualquer protagonismo. Na verdade, são músicos trabalhando em prol da canção, e não o contrário.
“Afro Funk Brazilian Music” talvez seja a única faixa que não honra os predicados listados, ficando um pouco perdida em sua aproximação com o funk. Mas isso está “perdoado”, já que ela está entre “Ijexá pra Ela” e “Transgênico”, dois dos muitos pontos altos do álbum lançado pelo selo Atotô Label, e que conta ainda com as participações de Ivan Melillo (flauta transversal), Kiko Woiski (baixo), Jussan Cluxnei (clarone) e Fi Maróstica (baixo e também o responsável pela produção).
Poucas semanas atrás, ele conversou com o Scream & Yell por videochamada para contar como essa grata surpresa que é “Balançado” foi gestada.
Mesmo com seu background no choro, seu disco procura dialogar com uma linguagem mais moderna, e até procura inovar dentro de linguagens já consolidadas. Como esse disco começou? Já tinha toda a ideia musical desenhada, e a banda foi montada nesse sentido?
Acho que começou no meu primeiro disco, “Percussivo” (2015), que eu fiz de forma autônoma e fui fazendo da forma que eu conseguia fazer, desenfreado mesmo. Ali eu já trabalhava bastante o ritmo, e agora no segundo eu procurei fazer uma formação diferente. Apesar de tocar choro, eu não gosto de formações tradicionais. Eu queria uma formação nada tradicional e que pudesse explorar o ritmo no seu mais profundo, explorar de fato. Comecei a compor em cima dessa ideia, ainda antes da pandemia, criando ritmos referenciados por diferentes locais, como África, América Latina, Estados Unidos – porque tem umas faixas que têm um pouco de funk e tal. Eu queria pegar esses ritmos e criar uma formação que eu pudesse tocar tudo isso, mas também com influência brasileira, então a escolha da guitarrinha baiana não vai pra um lado BaianaSystem, nem Armandinho, nem trio elétrico. Tem um pouquinho ali da pegada do próprio choro, porque é de onde vem o Paulo Novais [solista desse disco], mas é outro tipo de linguagem. Pensei nessa forma, e falei para ele, “ó, vamos trabalhar, sair da casinha para que você possa explorar mais os ritmos”. O disco é metade bandolim e metade guitarra baiana, mas mesmo o bandolim exerce uma função muito diferente da do choro, que é onde ele é tradicionalmente conhecido.
Ao mesmo tempo, me parece que você quis trabalhar muito com os músicos que você tinha, em vez de fazer aqueles álbuns solo onde, a cada faixa, chama colaboradores diferentes. Uma identidade de banda, mesmo.
Sim. Essa é uma identidade de banda que meu primeiro disco já tem, mas ali era um trio. Eu preciso de uma banda mesmo, porque eu toco sete cordas, mas eu não sou um solista, então tenho que trazer minhas composições para um outro instrumento. Já tinha pensado em uma formação fixa para que eles [os músicos] pudessem comprar a ideia e o disco pudesse se unificar. A gente trabalhou construindo firme isso de ensaio em ensaio. E é bom lembrar que o produtor é o Fi Maróstica, também um grande músico, e ele conseguiu dar uma modificada no nosso som, mesmo depois que a gente tinha passado por todos esses ensaios. Isso fez muita diferença também.
A maneira como ele foi mixado me surpreendeu, porque ele manteve o peso, destacou a percussão e as cordas com som mais grave. Ficou uma coisa intensa, passa a sensação de ser ao vivo.
Tem bem a mão dele aí. Eu gravei o violão na sala técnica, com ele e o técnico de som ao lado, o Fi tava ali, olhando para mim, dando umas dicas. E também gravei isso com a percussão junto, ao vivo mesmo. Depois foram colocados alguns elementos, claro, não havia como colocar tanta coisa ao mesmo tempo. Mas ele esteve presente ali modificando uma coisa ou outra na percussão, na minha levada também. Às vezes falava que algo não estava funcionando e propunha mudanças, e isso daí deu esse peso diferenciado. E a sua observação tem a ver: o lance de ter gravado a percussão e o violão juntos modifica muito a experiência de ouvir depois de pronto. É mais natural.
Tenho uma bronca muito grande de tratarem a música instrumental como gênero, porque não é, né? O instrumental é só uma linguagem dentro de todos os gêneros possíveis. Mas o Brasil ainda tem um circuito de shows que gira em torno do instrumental. Às vezes tem festivais que se apresentam como jazz, e eles são na verdade festivais de música instrumental, alguns até com poucos artistas de jazz (risos). Outros festivais se vendem como “instrumentais”, mas vão ter erudito, post rock e afrobeat na mesma noite. Existe essa distorção do conceito, e sei que é meio difícil escapar dela, mas te incomoda estar no meio disso?
Não, não. (risos) Mas você falou várias coisas que penso também da mesma forma. É difícil ir a um festival de jazz e ouvir uma música que não é jazz. Isso é da nossa cultura. Já fui em festival de choro que estava vendido como festival de jazz – mesmo só tocando choro. Mas não me incomoda nem um pouco. É claro que tem um ressentimento porque a gente vive num país que não é dado o devido valor, é um bocado difícil sobreviver trabalhando só com ela. A não ser que você esteja em uma esfera muito grande. Batalho bastante para manter um canal no YouTube, onde falo das minhas composições, e percebo a diferença quando coloco um samba, um choro, e depois quando coloco minha música. Claro, no caso do choro ou do samba, a gente está falando de músicas que atravessaram épocas, mas sinto que as pessoas ainda não estão acostumadas a sentar e querer ouvir de fato, então é uma batalha intensa. Mas até gosto de estar nesse lugar, porque amo mesmo esse tipo de música que eu faço, e para mim é como surgisse uma bandeira e eu fosse atrás disso, para mais pessoas ouvirem. Quanto mais, melhor, né?
E mesmo usando alguns elementos que poderiam ter um certo apelo, ao menos de nicho, você não joga para esse mercado. Você incorpora alguns ritmos afrolatinos, ou mesmo latinos, mas não é como se você tivesse uma cumbia ou um afrobeat, muito menos uma MPB para exportação, mais fundada no choro tradicional.
Em momento algum me passou pela cabeça que eu tinha que me adequar a um determinado tipo de mercado. Vou te dar um exemplo disso: no disco, tem uma rumba, “Chorando em Cuba”. Nem gosto muito de falar que é uma rumba, porque não nasci em Cuba, sabe? Não sei tocar rumba como um cara que nasceu lá toca. Por isso busquei a inspiração naquele gênero, naquele nicho, e toquei do meu jeito, pensado da minha maneira, com as influências que eu tenho. Tem um ijexá no disco (“Ijexá pra Ela”) que eu queria trabalhar com ideias que viessem na hora, sem pensar que precisaria ser fielmente um ijexá. Ou seja, em nenhum momento do disco pensei em me adequar: sentei aqui em casa e fui sentindo e entendendo a música conforme eu queria, com as minhas influências.
Você é pesquisador professor também. Isso faz com que você sempre pense sobre os processos de criação e estruturação das composições, que tenha um olhar mais racional sobre como tudo é feito. Isso acaba exigindo um processo mais cerebral e menos intuitivo. Isso é algo que se filtra na sua maneira de compor, ou esse é um momento em que você consegue se ver livre da pesquisa e da teoria?
Eu não consigo compor em pesquisa nem nada. Eu vou, pesquiso, toco, vou ouvindo e ouvindo… Mas na hora de compor, não consigo fazer desse jeito. Meu processo é sentar com violão e tentar inúmeras vezes seguir por caminhos que eu não conheço. Acaba que tudo que pesquiso ou que trabalho como professor não influencia diretamente. Claro que uma coisa ou outra aparece [como influência], mas o processo de criação é sentar ali e ficar na persistência, tentando achar as melodias, tentando achar o ritmo que me agrada mais. Sou de Minas e tenho muita influência da música mineira – Clube da Esquina, Toninho Horta, sempre tive. E eu sempre via muito disso neles também. Posso estar falando besteira, mas do pouco que conheci deles, cheguei a tocar com alguns deles, vi que o processo de criação deles é muito natural, na hora. Então isso me influenciou muito: essa coisa de não ficar pensando, racionalizando. O momento de compor é o momento de conforto pra mim. É eu conseguindo sentir alguma coisa e transformá-la em música. Se deixei de sentir ou se não estou com vontade, largo o violão e vou trabalhar técnica, vou tocar música que não seja minha (risos).
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) é produtor e assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.