texto por Eulalia Cambria
“O futuro já é nostalgia” é um mantra, expressão que aparece regularmente nos painéis a cada edição, palavra de ordem que resume o rito celebrado pelo povo do Ypsini com uma fórmula cíclica. O Ypsigrock, no habitual recinto de Castelbuono, comuna italiana da região da Sicília, província de Palermo, atingiu a marca vinte e seis em agosto passado, entrando legitimamente entre os eventos mais antigos de Itália, ultrapassando o estatuto de simples festival para ascender, com cada vez maior força, um espaço imaterial, um lugar ideal para assistir às apresentações dos seus grupos favoritos e descobrir, com antecedência, muitas próximas grandes novidades, compartilhando tudo junto com uma comunidade fiel.
Neste ano, o festival siciliano replicou a vitalidade demonstrada nas edições pós-covid, dotando-se de uma organização que em nada nos fez lamentar realidades maiores e mais conceituadas, sobretudo tendo em conta que os bilhetes foram vendidos com grande rapidez e todos os quatro dias se esgotaram, com mais de 12 mil espectadores. A presença de um público tão numeroso ao pé de um antigo castelo e ao longo das ruas de uma característica aldeia serrana do Parque Madonie não pesou nem complicou o desenrolar do festival que manteve um ambiente extremamente agradável e descontraído.
Talvez mais do que outras vezes, esta 26ª edição demonstrou ter um rumo claro do ponto de vista musical, confirmando o cuidado na seleção das escolhas artísticas que compõem o cartaz. Do Slowdive, nome histórico do line-up deste ano, aos grupos que tocaram à tarde no Chiostro di San Francesco, o maior componente foi o shoegaze e a psicodelia, com destaque para o revival geral dos sons etéreos e flutuantes nos lançamentos mais recentes. A existência de um fio condutor é na verdade um aspecto bastante novo do Ypsigrock, que no passado talvez tenha se desviado um pouco para tendências mais pop, e a coerência, bem como a qualidade das bandas, foram os pré-requisitos para a edição de 2023.
Depois do aperitivo de boas-vindas no Bar Cycas que reúne os primeiros clientes atrás do console de Fabio Nirta (Shirt vs T-shirt), o espaço que acolhe o evento inaugural é a antiga Igreja do Crucifixo. Este ano a habitual residência artística The Sound of This Place está a cargo de uma equipe feminina (Marie Davidson, Dana Gingras, Lucie Bazzo e Francesca Fabrizi) que apresenta um espectáculo suspenso entre a dança e a música electrônica. Com uma ligeira sobreposição de tempo, a primeiro apresentação no palco da Piazza Castello é a dos americanos Thus Love. A energia pós-punk, tendente ao canto evocativo do Bauhaus, sem tons excessivamente sombrios, envolve a chegada do público com uma presença de palco envolvente (em particular, menção ao cantor e guitarrista – na foto – Echo Mars), entre o melhor de todo evento. Pale Blue Eyes, o segundo a subir ao palco, consegue misturar o tom melódico do indie dos anos 80 com a psicodelia e o dream pop de uma forma intrigante, sem desprezar os ritmos lisérgicos do estilo Neu. Talvez menos memorável tenha sido a atuação de Ekkstacy, que apesar da atitude rock, próxima do nu metal, deixou uma impressão estática.
Da cota italiana, depois do esplêndido concerto de Manuel Agnelli em 2022, o destaque deste ano vai para Verdena. A banda mostra excelente harmonia no palco e com o público, apresentando-se durante quase uma hora e meia. O setlist atende aos desejos dos fãs que compareceram à ocasião graças à presença de músicas escolhidas homogeneamente de todos os álbuns, encerrando o encore com o primeiro single “Valvonauta”, seguido de uma música (“Pascolare”) retirada do recente álbum, “Volevo Magia”.
Entre as melhores surpresas desta edição devemos citar o grupo inglês Traams. Com três álbuns lançados ao longo de dez anos, sendo o último deles, “Personal Best”, de 2022, a banda liderada por Stuart Hopkins se apresenta com um estilo de rock alternativo de origem sonicyouthiana proporcionando um clima cheio de adrenalina em choques que atingem o público com longos interlúdios instrumentais ajustados a ritmos morik obsessivos e crescendos finais frequentes. Liela Moss, do plantel da Bella Union Records, agraciou a casa Ypsi Once com carisma e excelentes vocais no segundo dia, agradecendo “pelo belo fim de semana na Sicília.”
Se o line up desta edição acolheu uma notável quantidade de adeptos do som distorcido e rarefeito, dando espaço a um bom número de celebrantes do culto shoegaze, o Slowdive, desta mesma tendência, foram sacerdotes indiscutíveis. Enquanto o castelo de Ventimiglia era colorido com luzes roxas e lilases, a banda de Reading conseguiu suspender as almas dos Ypsinis com uma atmosfera verdadeiramente única, daquelas que apenas alguns grupos são capazes de criar. Uma onda de emoções rodou pelo palco do Ypsigrock com um setlist que mostrava Rachel Goswell e o resto da banda em ótima forma, entregando uma sequência de músicas de tirar o fôlego, começando com “Slomo” até marcos como “When The Sun Hits”, “Catch the Breeze” e “Alison”. Um dos momentos mais intensos foi a proposta de cover de uma peça de Syd Barret, “Golden Hair”, retirada de um poema de James Joyce: “I heard you singing in the midnight air/ Singing and singing a merry air”; E foi em notas como estas, alegres e ao mesmo tempo transbordantes de toques melancólicos, que o público deixou lentamente a piazza.
Estamos na metade do festival e o terceiro dia reserva alguns cartuchos decididamente interessantes do início da tarde. No Claustro de San Francesco, entre copos de sambuca Molinari (principal patrocinador do evento) e a extensão de camisas e camisetas policromadas que animam o pátio, depois de Plastic Mermaids chega King Hannah, a dupla de Liverpool formada por Hannah Merrick e Craig Whittle, que chamou a atenção no último ano após o lançamento do EP “I’m Not Sorry, I Was Just Being Me”, e chega liberandp sua verve com uma performance ao vivo em que, ao lado da voz aveludada do cantor, se destacam as intervenções do guitarrista que lança intrigantes solos baseados em fuzz. Durante o show, acompanhado de grande entusiasmo, Hannah garante: “A Itália é o nosso lugar favorito para tocar. Não só por causa do gelato, mas porque vocês são o público incrível!”
A noite abre com The Haunted Youth, banda belga liderada por Joachim Liebens que apresenta, graças também aos teclados e guitarras com efeitos, um som indie pop com tons reverberados, sem prescindir, de vez em quando, de notas mais animadas. A veia dream pop é a marca registrada do line up do terceiro dia, que inclui a presença de Still Corners, uma das bandas mais aguardadas deste ano no festival. A elegante dupla, composta por Tessa Murray e Greg Hughes, graças também aos belos visuais, leva o público numa viagem, entre luzes suaves, solos de guitarra, sons synth-pop e atmosferas dos anos 80. E é justamente “The Trip” a música com que saúdam o público. Os austríacos HVOB seguem com a veia indietronica sonhadora, ainda que com uma incursão pelo house. Concluindo, quando a noite chega e as estrelas cadentes beijam a Piazza Castello, The Comet Is Coming entrega uma das melhores performances desta edição, graças a um som imprevisível que combina nu jazz (com o saxofonista Shabaka Hutchings), psicodelia, space rock e ecos afrobeat.
No Claustro o quarto dia começa com Monikaze, artista lituano que oferece um set electrônico que vai do IDM ao jazz. Surge então uma das bandas revelação do festival, a Noisy, que da costa sul de Inglaterra faz o público dançar e fazer mosh com a sua irresistível mistura de rock e rap, breakbeat e estilo punk. Uma surpresa muito bem-vinda é o cover de “Praise You”, do Fatboy Slim, perfeitamente integrado ao estilo deles, enquanto o cantor Cody Matthews se lança no body surfing.
No castelo a dança começa com os canadenses Kiwy Jr., banda com uma composição bastante cativante, que movimenta os acordes de todos os fãs do indie-pop dos anos 80, entre o tilintar da guitarra de Jeremy Gaudet e as melodias dos Beatles. Singles como “Unspeakable Things” e “The Sound Of Music” sem dúvida não pareceriam deslocados na famosa compilação C86. Uma proposta que pretende dar a todos uma boa dose de boas vibrações e atitude nerd. A seguir, Just Mustard transporta os ouvintes para uma área cinzenta que está exatamente a meio caminho entre a psicodelia e o shoegaze mais arrependido e sombrio, guiado nesta estranha viagem pela voz onírica de Katie Ball.
E finalmente chega a hora da apresentação do estranho casal formado por Panda Bear & Sonic Boom, mostrando o recém-lançado álbum “Reset”, trabalho particular em que cada faixa se desenvolve a partir de um sample de uma música dos anos 60. O álbum é executado na íntegra de forma impecável e para a ocasião a dupla é acompanhada por um cenário de visuais hipnóticos. O aspecto visual é fundamental para criar a atmosfera certa, como demonstram os videoclipes lançados que acompanham os singles “Edge of the Edge” e “Danger”. A psicodelia proposta pelos dois é ensolarada e positiva, melódica e atordoante, e conduz o Ypsini a uma atmosfera alegre e colorida. Estamos perante aquele que, na minha opinião, é uma das melhores apresentações da edição ’23 do festival. A última banda a subir ao palco são os Young Fathers que oferecem um espetáculo perfeito para dar uma conclusão digna ao evento (tocando também em referências políticas, com declarações contra o fascismo) entre percussão, canto a três vozes e acrobacias na plateia.
A alegria de ter participado mais uma vez na experiência totalmente imersiva e memorável do Festival Ypsigrock – para todos aqueles que o vivenciaram e que regressam mais ou menos a cada edição como uma grande família que se reúne num determinado período do ano, desta vez ainda num maior senso de comunidade e participação devido aos terríveis incêndios que atingiram a Sicília algumas semanas antes e também diversas zonas do Parque Madonie – foi resumido no final pelos aplausos emocionados à associação Glenn Gould e aos organizadores reunidos em completo, não surpreendentemente, sob as notas de “All I Want for Christmas is You”, de Mariah Carey.
O que faz de um festival algo que vai além da vertente musical é justamente este contexto feito de autenticidade e de contato com o território (como, por exemplo, a presença de um backstage dentro da igreja atrás do palco principal!) e também com tudo o que gira em torno, como o festival Avanti il, que oferece o palco Cuzzocrea na área de camping aos artistas emergentes vencedores do concurso anual (este ano foram Wism, Hollyspleef, Nòe, Kick, Maury111, Ekranoplan). E é no parque do camping, no bosque de San Focà, que realiza-se ao amanhecer a última grande festa final, com o espetáculo absurdo e perturbador do grupo polaco Siksa, entre fantasias monstruosas e lampejos de monólogos alienígenas. Festa final? A página do Facebook do Ypsigrock já exibe as datas da próxima edição, de 8 a 11 de agosto de 2024, e aquela frase citada no início, “O futuro já é nostalgia”, na contagem decrescente, volta a ganhar sentido.
Texto publicado originalmente no site italiano Kalporz, parceiro de conteúdo do Scream & Yell