entrevista por Pedro Salgado, especial de Lisboa
A afabilidade, o conhecimento sólido do meio musical em que se move e, sobretudo, a paixão pelo seu trabalho são as principais impressões que a artista Filipe Sambado me transmite durante uma conversa num banco do Jardim da Estrela, em Lisboa. O assunto dominante do nosso encontro é seu novo álbum, “Três Anos de Escorpião em Touro” (2023), lançado em 29 de setembro, que Sambado começou a compor no início da pandemia. Singular e intimista, o disco representa um olhar sobre seus três últimos anos de vida, nos quais passou por diversas mudanças pessoais e artísticas, traduzidas em momentos de felicidade e fases de maior dificuldade, que foram determinantes na sua procura identitária e no seu processo criativo.
Sobre o título do álbum, Sambado assume uma ligação direta com o período que viveu de forma poética e esotérica: “O nome do trabalho está relacionado com o mapa astral e com o fato do meu Vênus ser em Touro, mas também se liga ao ascendente que tenho, bem como possuir Júpiter em Escorpião. No fundo, traduz o impacto que o confinamento provocou em mim e a forma global como me revejo”.
Para antecipar a edição do disco foram apresentados vários clipes dos singles de “Três Anos de Escorpião em Touro”, integrando um álbum visual que Filipe Sambado se propôs fazer e que recebeu o apoio da Sociedade Portuguesa de Autores. O mais recente, “Entre os Dedos das Mãos”, teve a realização de Diego Bragà (uma artista transdisciplinar brasileira para quem Sambado produziu algumas músicas do seu último trabalho, “Super Puta”, de 2023) e de Miguel Afonso Carranca, que realizou o filme “Cenas de uma Vida Amorosa” (2019), protagonizado pelo artista.
Dotado de um componente lírico mais maduro, o novo disco resume e dá seguimento aos caminhos sonoros que a artista já tinha percorrido nos álbuns “Vida Salgada” (2016), “Filipe Sambado & Os Acompanhante de Luxo” (2018) e “Revezo” (2020), com o foco no encontro entre a tradição musical portuguesa, o experimentalismo e a eletrônica. O single “Talha Dourada” é um dos momentos mais fortes do trabalho e coloca a tônica na afirmação individual, “Choro da Rouca” é simultaneamente dramática e encantadora pelo teor confessional com que Sambado aborda um momento de depressão profunda, enquanto “Laranjas/Gajos” insere-se no segmento apocalíptico do disco, em que a contemplação e a celebração corporal caminham lado a lado. Também há espaço para o pop (“Hybris”) e a dança (“Caderninho”), mas a parte final do álbum revela uma emotividade superior e termina ao som do fado com “Um Lugar na Mouraria”, simbolizando um regresso a casa em paz como contraponto do desprendimento e do grito inicial da faixa de abertura, “Frasco de Vidro”.
Para os shows de apresentação do trabalho, a 16 de Novembro no Lux Frágil (Lisboa) e 23 de Novembro no CCOP (Porto), Filipe Sambado promete “criar um momento bastante íntimo e desenvolver uma conexão com o público”, numa atuação com base na guitarra e voz que dará lugar a uma turnê portuguesa em 2024. “Neste novo espetáculo estou a tentar montar uma coisa fixa e dinâmica que vá às partes que me interessam e se assemelham à história do disco. Pretendo contrastar momentos impactantes e musculados com fases mais íntimas e muito próximas da assistência. No fundo, trata-se de aproximar a experiência sensorial do concerto ao álbum”, conclui.
De Lisboa para o Brasil, Filipe Sambado conversou com o Scream & Yell. Confira:
Passaram-se três anos desde que você lançou “Revezo” e eu gostaria de saber quais foram os estímulos criativos que a levaram ao seu novo disco, “Três Anos de Escorpião em Touro” (2023).
Eu comecei a compô-lo no início da pandemia. Fiz uma série de experiências e adquiri diversas ferramentas de trabalho. Depois, escutei alguns discos que me puxaram mais para esta vertente, entre os quais “Flamboyant”, de Dorian Electra e “Pang”, de Caroline Polachek. Também deambulei um pouco por artistas como A. G. Cook, Sophie e pela Arca (cantora, compositora, produtora e DJ venezuelana). Fundamentalmente, constituem uma série de referências que me ajudaram a encontrar materiais atuais a fim de orientar este álbum. Acho que os últimos discos da Arca, os cinco “Kick’s” que ela lançou, foram interessantes para um certo tipo de espectro sonoro mais pós-apocalíptico e experimental que combina muito bem com o lado tradicional que ela também exibe nesses álbuns. A Arca ligou bastante as suas coisas à percussão venezuelana e isso interessou-me pela facilidade com que se relacionava ao que eu já andava a experimentar e afunilei no “Revezo” (2020). Por isso, foi uma ajuda importante para unir as pontas ao trabalho que desenvolvi.
Um dos cartões-de visita do disco é o single “Talha Dourada” em que você canta: “Não quero ser mais de um nem de outro / Sou mais eu quando não tenho medo de ser”. Ele simboliza a libertação e a personalidade não-binária que você assume neste trabalho?
Sim, é isso mesmo. Na primeira e na segunda estrofe estou a referir-me de forma direta aos gêneros. Essa canção é muito importante e por essa razão foi o single mais oficial do disco. É uma música que está um pouco ligada às disses de hip hop e de estar a falar para uma terceira pessoa que é quase uma entidade coletiva. Neste caso, menciono a má-língua, que eu chamo de quadrilheiros (mexeriqueiros). Eu faço-o com um linguajar muito português e sinto que essa é a parte que coloca a canção dentro deste universo. Depois é o cartão-de-visita que você citou em que ela chega e diz imediatamente ao que vai e põe os pontos nos is.
O clipe de “Mau Olhado” difunde uma ideia de ousadia que causa surpresa e depois evolui para um território mais elegante e artístico. Foi uma ideia sua apresentar-se desta forma?
Estas imagens vêm muito do meu universo imagético e posso dizer confortavelmente que o ‘core’ da proposta visual é minha. Mas convidei várias pessoas em quem confio criativamente, como realizadores e diretores de arte, para fazerem parte deste processo criativo e ele foi bastante permeável a outras sugestões. No entanto, podem haver coisas que são significativamente diferentes ao mesmo tempo. Para mim, “Mau Olhado”, representava um disco de dia. E o realizador do clipe, Martim Braz Teixeira, sempre viu a música como sendo de noite. Por isso, conversamos com o resto das pessoas, relacionando o componente estético que ele antevia em termos de fotografia e sobre qual seria o cenário mais interessante. Este tipo de questões ocorreram em todos os vídeos que fizemos e com o projeto de criar um álbum visual existia um conjunto de ramificações, de pontas e metástases que ia ficando de um filme para o outro. O assunto da tinta é transversal a todos os clipes. No primeiro vídeo (“Mau Olhado”) há uma agressão com os balões de tinta, no segundo clipe (“Talha Dourada”) as mãos estão a sangrar devido a um golpe provocado por um balde de tinta com bonecos, no terceiro (“Choro da Rouca”) sucede um momento de vergonha com o xixi ou uma menstruação colorida que desce pelas minhas pernas abaixo, no quarto (“Laranjas/Gajos”) os marcadores de tinta parecem representar marcas e cicatrizes e o mais recente (“Entre os Dedos das Mãos”) termina com uma espécie de homicídio coletivo e a tinta também aparece. O surgimento da criança no clipe de “Mau Olhado” deriva do fato da minha filha, Celeste, ter estado presente nesses dias de gravação e nós tentamos ao máximo que não houvessem leituras demasiado pesadas, mas sabíamos que podiam aparecer interpretações ligadas ao futuro e ao passado. No entanto, não foi tão voluntarioso e acabou por ser apenas uma celebração da presença dela.
Você já trilhou o rap, rock, indie, folk e o pop psicodélico e é uma artista ligada à renovação da tradição musical portuguesa. O seu processo de composição começa habitualmente com a música ou com as letras?
É cada vez mais um processo misto em que a palavra gera melodia ou o inverso. Às vezes pode ser qualquer coisa que estimule a continuidade do processo criativo. A parte mais entusiasmante de todas é a satisfação de eu conseguir que uma ideia à qual me agarrei se transforme em algo interessante. Gostar tanto de fazer é o verdadeiro incentivo. Por muitas dores de cabeça que o método traga e mesmo sabendo que há prazos a cumprir, que nos obrigam a realizá-lo de uma ou de outra maneira, isto é sempre pela felicidade que o trabalho nos dá. Mas, também, pela vontade que resulta de convencer as pessoas de que fizeste algo realmente bom, mesmo que elas não estejam a entender. É sobretudo sobre a forma como nos agarramos a algo que brevemente vai deixar de ser nosso, porque a partir do momento em que a música é lançada já não nos pertence. Trata-se de um jogo muito difícil para saberes até que momento a canção é tua, porque ela está a ganhar vida desde que está a ser feita, mas ter-lhe demasiado amor também pode ser contraproducente. É importante que a música se transforme no que merece e o aspecto mais interessante de todos continua a ser o prazer de realizar o processo. Isso deixa-me sempre com uma luz nos olhos.
Acredita que este caminho de autenticidade e exploração musical que seguiu em “Três Anos de Escorpião em Touro” poderá conduzi-la a um patamar de maior reconhecimento a nível nacional e até aflorar mercados internacionais?
Eu gostaria de ter a oportunidade de mostrar o meu trabalho a mais pessoas. Por vezes, sinto que o nosso meio e o consumo de nicho que temos é demasiado curto e acaba por ser mais difícil para os artistas portugueses. A possibilidade de aumentar esse espaço e ir para outros países seria uma opção que me interessaria. No fundo, a música independente e que tem um lado de investigação e de identidade, como você disse, torna-se muito limitada em nações pequenas. Sinto que ficamos com um tempo de exposição reduzido, porque são salas exíguas e escassas. É importante ter a chance de nos mostrarmos a um segmento maior. No nosso tipo de mercado (composto por um conjunto de quatro ou cinco rádios, uma imprensa bastante pequena, algumas salas e teatros que acolhem esse tipo de programação musical, assim como as respectivas redes e os espaços disponíveis para esta atividade), os trabalhos acabam por ser bem recebidos. Mas, as coisas têm um tempo curto de vida e tendo em conta que o consumo é tão pouco, acaba por haver alguma precariedade no que respeita ao sustento. O cenário é diferente com um fenômeno artístico de sucesso semelhante a acontecer em Espanha e que pode ter a pretensão de ir para o mercado sul-americano. A música cantada em espanhol tornou-se mundial e no Brasil o funk também ganhou bastante força. Existem imensos casos em certos países que, pontualmente, adquirem um valor artístico similar ao nosso, mas a escala é completamente diferente. Até na Islândia, todo aquele experimentalismo da Björk tal como os Sigur Rós, e outras bandas de lá, acabou por resultar e eles expressaram-se culturalmente e musicalmente e o panorama floresceu. Isso passa por acreditar que apenas necessitamos de investimento. Quando falo de investimento, quero dizer que as oportunidades que temos de nos apresentar num festival não significam que fazemos um show igual ao da Galeria Zé dos Bois, por exemplo. São coisas diferentes e é improvável que seja a mesma possibilidade. As pessoas têm de sentir que somos capazes de realizar um bom espetáculo.
Gostaria de deixar uma mensagem para os leitores do Scream & Yell?
Eu recebi uma manifestação de interesse, satisfação e gosto por parte da casa mãe da Altafonte, no Brasil. Isso despertou o alarme para a possibilidade de fazer algumas colaborações com artistas representados por este selo. Eu vejo com ótimos olhos a possibilidade de atuar no Brasil seja em que tipo de circunstância for. É um país que nos diz muito pela proximidade linguística, por toda a responsabilidade histórica que temos de assumir e o que isso nos aproximou no bom e no mau. Nesse sentido, existe tanta coisa bonita e agradável que nos é tão fácil apreciar em termos culturais e musicais e isso é super-atrativo. Do que conheço, parece ser uma cultura de que gosto bastante, porque é plural e rica. Eu queria passar por vários sítios, tocar nas grandes metrópoles brasileiras e fazer uma colaboração com a MC Carol. Espero que a música do disco “Três Anos de Escorpião em Touro” lhes faça sentido. Ela tem um lado naturalmente português que poderá ser atrativo e deliciar o público do Brasil.
– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell desde 2010 contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui. A foto que abre o texto é de Rita Chantre / Divulgação