texto por Renan Guerra
Numa entrevista exclusiva que acompanha a projeção de “Estranha Forma de Vida” (“Strange Way of Life”, 2023), o cineasta espanhol Pedro Almodóvar conta que, alguns anos antes, em uma mesa de debate sobre o futuro do cinema, seus colegas de profissão confabulavam sobre aquilo que estariam fazendo no futuro, muitos falavam em séries, em outros formatos virtuais, quando Almodóvar disse “eu pretendo fazer um curta-metragem”, o que foi recebido com ceticismo. Curtas-metragens estão geralmente associados a diretores em início de carreira, mas se tornaram um veículo de experimentação para o diretor espanhol em sua maturidade.
“A Voz Humana”, de 2020, tinha 30 minutos e trazia como estrela a atriz Tilda Swinton naquela que foi a primeira experiência de Almodóvar dirigindo em língua inglesa – algo que ele namorou muitas vezes, mas que sempre recusou, tanto que recentemente ele estava envolvido em um projeto ao lado de Cate Blanchett, numa adaptação de “Manual da Faxineira”, de Lucia Berlin, mas que ele logo abandonou, por se considerar não apto. “A Voz Humana” traz experimentações formais, mas retoma uma referência constante na obra de Almodóvar: o texto de mesmo nome de Jean Cocteau que já aparecia de forma direta em “A Lei do Desejo” (1987) e que era a base inicial para “Mulheres à beira de um ataque de nervos” (1988). Almodóvar é afeito aos diálogos entre seus filmes e há referências basilares que os fãs mais apaixonados sempre conseguem captar.
E isso advém da forma de escrita utilizada pelo diretor, que costuma criar pequenas cenas, pequenas passagens que lhe causam interesse e acabam depois se desenvolvendo de outras formas. É assim que, por exemplo, o mesmo cadáver no freezer que aparece como plot de um livro ficcional escrito por Amanda Gris (Carmen Maura) em “A flor do meu segredo” (1995) acaba se tornando uma narrativa central de “Volver” (2006). Dentre essas idas e vindas, muito se especulou que “Estranha Forma de Vida” (curta que, assim como “A Voz Humana”, também tem 30 minutos) teria uma correlação com “O Segredo de Brokeback Mountain” (2005), de Ang Lee. Explicamos: Almodóvar foi convidado a dirigir a adaptação cinematográfica do conto de Annie Proulx, porém com receio de ter sua liberdade artística tolhida pela indústria de Hollywood, acabou declinando da oferta. Por causa disso, repetidas vezes a imprensa o questionou sobre o filme de Ang Lee, porém ele sempre foi categórico em dizer que adora o filme como ele é, mas perguntado sobre como seria a adaptação almodovariana da história, ele não se furtou a brincar que a versão dele teria mais sexo. Essa declaração obviamente foi mal-recebida por uma parcela do público bastante sensível que fala até em possibilidades de “pular” as cenas de sexo das obras cinematográficas, por considerá-las “desnecessárias”, seja lá o que significa o conceito de “necessário” quando estamos falando de uma obra de arte.
Todo esse contexto é para dizer que muita gente entendeu, erroneamente, que “Estranha Forma de Vida” seria uma leitura do que aconteceu com os protagonistas de “Brokeback Mountain” muitos anos depois, mas não é isso. Almodóvar construiu o filme a partir do seu método de trabalho que expomos ali acima, isto é, ele imaginou uma cena inicial em que um casal de homens após um reencontro de muitos anos e uma longa noite de sexo decide discutir a sua confusa relação. Dessa cena ele desenvolveu o que aconteceu antes e depois da tal briga e aí também delineou o fato desses homens serem cowboys. É a partir dessa definição que o filme acaba ganhando os contornos de western – óbvio que pra isso tudo acontecer também incluímos nesse balaio o apoio financeiro da marca de moda Yves Saint Laurent, fundamental para a existência do filme nesse formato de curta-metragem. Para completar, ao imagético imaginado por Almodóvar se adicionam as figuras de Ethan Hawke e Pedro Pascal, dois atores de universos distintos, mas com um público fiel e apaixonado. Segundo o diretor, um dos castings mais fáceis de fechar de sua carreira e uma deliciosa surpresa, já que os dois atores tiveram uma química especial e se transformaram em bons amigos após as gravações.
“Estranha Forma de Vida” foi gravado nos Estados Unidos, usando como locação a icônica cidade cenográfica criada por Sergio Leone para a sua trilogia dos dólares – “Por um punhado de dólares” (1964), “Por uns dólares a mais” (1965) e “Três homens em conflito” (1966). De todo modo, Almodóvar deixa claro que os westerns spaghetti não são o seu ponto referencial, ele volta mais fundo nos faroestes dos anos 40 e 50, com todo seu abuso estético e seus exageros em tecnicolor. O diretor não tem medo de brincar com todo o histrionismo dessas produções para inserir as suas narrativas dentro desse universo. E sua narrativa parte de um questionamento que ele sempre teve: como poderia haver tantos homens assim reunidos nesses westerns e não termos um romance homossexual nesse universo? Isso não fazia sentido. E não faz mesmo, por isso é tão rica a sua narrativa em torno desse amor contido de dois cowboys que, se por um lado se entregam aos desejos carnais, por outro relutam em formar uma casa e viver uma vida de casal.
Almodóvar é bastante respeitoso com o espaço-tempo, uma vez que esse é seu primeiro filme de época, e esses detalhes podem ser conferidos na entrevista exclusiva que acompanha o lançamento do filme nos cinemas brasileiros, mas ele se deu ao luxo de incluir um anacronismo: o fado “Estranha Forma de Vida”, um grande sucesso de Amália Rodrigues, aqui cantado por Caetano Veloso – versão que havia sido gravada especialmente para o filme “Fados” (2007), de Carlos Saura. Caetano é outra dessas referências clássicas dentro do universo almodovariano, assim como pequenos detalhes que constroem a narrativa de “Estranha Forma de Vida”, filme que, a primeira vista, pode parecer algo estranho dentro da filmografia do espanhol, mas não o é, pois grita “Almodóvar” em casa segundo de projeção, com todo o melodrama e os exageros que são sua marca. Mesmo em inglês, Ethan Hawke e Pedro Pascal se colocam num ritmo muito usual dos filmes de Almodóvar e as intenções narrativas do diretor se tornam ainda mais pulsantes. O sexo pode não ser gráfico e fica, muitas vezes, subentendido, mas poucas coisas são tão sexuais na filmografia de Almodóvar quanto um barril de vinho que jorra como gozo na cara dos personagens, que se deleitam entre homens e mulheres, até que nossos dois jovens cowboys abandonam suas companheiras para se entregarem a um lascivo beijo banhados de vinho.
“Estranha Forma de Vida” é uma experiência formal de um Pedro Almodóvar cinéfilo que ama e entende o cinema como poucos, que sabe jogar com os gêneros e que, com isso, nos entrega um faroeste delicado, em que o amor e os olhares entre dois homens se transbordam em carinho e desejo – coisa que só Almodóvar conseguiria fazer com tanta destreza.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.