texto por Gabriel Pinheiro
Em uma realidade não muito distante da nossa, a externalização da memória é uma tecnologia possível. Através de uma ferramenta chamada “Domine seu inconsciente”, você pode registrar, como num filme, as memórias que carrega dentro de si. É possível ter acesso tanto ao seu próprio registro particular, quanto às lembranças de uma multidão de outros participantes deste experimento – desde, é claro, que você aceite inserir as próprias memórias dentro dessa espécie de “nuvem” compartilhada, o chamado “Consciente coletivo”. Enquanto muitos vêem essa tecnologia com desconfiança, um número esmagador de pessoas topa embarcar nesse projeto que leva ao extremo a possibilidade do compartilhamento da própria intimidade.
“A casa de doces” (2022) é o mais recente romance de Jennifer Egan, vencedora do Pulitzer em 2011 com a “A visita cruel do tempo”. Se, há mais de uma década, a norte-americana encantou o público e a crítica internacional com aquele complexo caleidoscópio narrativo, envolvendo uma miríade de personagens e suas múltiplas vozes e estruturas narrativas, agora, ela retoma vários personagens daquela história, muitas deles coadjuvantes ali, ampliando o universo iniciado com “A visita cruel do tempo”.
Misturando passado, presente e futuro, e apostando em diferentes construções textuais e tempos verbais, Jennifer Egan constrói uma nova teia narrativa envolvendo antigos e novos personagens. O texto atravessa décadas e aqui nada parece acontecer por acaso. É impressionante o domínio da autora na construção desse complexo jogo, envolvendo múltiplas causas e consequências: uma mestra em jogar conosco e com os personagens que cria. Por diversos momentos me vi sorrindo sozinho ao linkar um acontecimento de um capítulo a outro anterior, quase como se escutasse um “click” quando duas ou mais peças se encaixavam – e são muitas as peças desse deliciosamente labiríntico quebra-cabeça.
Aqui, mais uma vez, a escritora parece inventar novas maneiras de contar. Há um capítulo – publicado anteriormente via tuítes – todo escrito em uma não-tão-comum segunda pessoa do singular, construído como uma espécie de manual para uma espiã – numa realidade onde a ferramenta “Domine seu inconsciente” leva a possibilidade da espionagem para um patamar jamais visto. Outro capítulo é todo narrado por meio de trocas de emails/mensagens. A cada resposta, a situação criada pela autora vai se ampliando de tamanha maneira, concluindo num ápice narrativo brilhante.
Como nos ensinam as fábulas e textos clássicos infantis, nada é de graça. Basta lembrarmos da casa de doces descoberta por João e Maria e das consequências sofridas pelos personagens ao adentrá-la. O que ainda iremos descobrir, num futuro distante ou quem sabe até mesmo amanhã, sobre nossa relação com os múltiplos algoritmos que nos circulam, que seguem influenciando tendências, comportamentos e a maneira com a qual nos relacionamos? A externalização da memória proposta por Jennifer Egan é assustadoramente real e próxima.
– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.