texto por Leonardo Vinhas
fotos por Klym fotografia
Joe Perry, do Aerosmith, colocou silicone no peitoral, e não economiza na tintura para o cabelo, tal qual Anthony Kiedis, dos Red Hot Chili Peppers. Os avós do Metallica mantém a mesma pose de malvado bravinho que tinham quando moleque. A peruca de Marky Ramone já é anedótica, enquanto John Rzeznik, do Goo Goo Dolls, passou por tantas intervenções estéticas que parece um cruzamento da Ana Maria Braga com o Dr. Rey. E os Hoodoo Gurus…
Bem, os Hoodoo Gurus não estão nem aí se os cabelos são uma lembrança antiga, ou se as faces estão vincadas, ou se o senso de moda deles é o de alguém na faixa dos 60 anos – que é, efetivamente, a faixa etária onde eles se encontram. Os australianos continuam sendo uma ótima banda de rock, e não precisam fazer cosplay de juventude para tentar nos convencer disso. Só a música basta.
Na verdade, é reconfortante ver que o rock, esse gênero que nasceu como uma música de e para jovens, sabe chegar à maturidade sem perder o vigor, como puderam comprovar as mais de 1500 pessoas que quase lotaram o White Hall Jockey Eventos, em Curitiba, na madrugada de 15 para 16 de abril. Público esse, aliás, que parecia ser do tipo que acompanha os Gurus desde seu auge comercial – o final dos anos 1980 e início dos 1990, quando canções como “What’s My Scene?”, “Come Anytime” e “Out That Door” sonorizavam reportagens televisivas e radiofônicas sobre surfe, viagens ao litoral e até a programação de algumas rádios rock.
“Depois de 26 anos, estamos de volta”, disse Dave Faulkner em bom português, antes de abrir os trabalhos. Ele e o guitarrista (e eventual vocalista) Brad Shepherd soltariam várias outras frases no idioma local, e a coisa soava mais como encanto genuíno com o país do que simples populismo de palco. Claro que os 42 anos de carreira dos Gurus ensinaram os caras a saber se comunicar com o público, mas eles conseguiam gerar a sensação de que realmente estavam onde queriam estar, fazendo o que queriam fazer.
E a julgar pela resposta do público, o mesmo pode ser dito sobre eles. Aparentemente, a maior referência dos espectadores era a coletânea “Electric Soup” (1992), o famoso “disco da toalha de mesa”, que até hoje é o mais vendido da banda no Brasil. Todas as faixas dessa compilação que apareceram no set – e não foram poucas – ganhavam não só uma recepção efusiva como, em muitos casos, eram cantadas do começo ao fim (ou pelo menos os refrãos eram entoados com gosto) pela audiência.
Dessa maneira, “Tojo”, “Leilani”, “Like Wow – Wipeout”, “I Want You Back” e outros cavalos de batalha aumentavam a temperatura, e vale notar o quanto a balada “Castles in The Air” ressoou fundo na memória do público curitibano. E obviamente a duplinha final, formado por “1000 Miles Away” e “Come Anytime”, ajudou a gravar a ferro o sorrisão na cara dos presentes. Mas será que era só a nostalgia que provocava essas reações positivas?
Possivelmente não. Dave Faulkner nunca escondeu que suas maiores referências para construir o som da banda foram os primeiros trabalhos de Elvis, dos Beatles e dos Ramones, e também a banda que, em sua visão, conseguiu combinar a sonoridade desses três, os Fleshtones. O mesmo Faulkner também já disse com todas as letras que sua pretensão sempre foi fazer canções das quais não se envergonhasse e com as quais pudesse fazer um dinheirinho.
Essa combinação de simplicidade e consciência estética sempre aproximou os Hoodoo Gurus mais do power pop que de qualquer outra estética, e as letras refletiam isso. Salvo em algumas faixas do álbum de estreia, “Stoneage Romeos” (1984), Faulkner e Shepherd sempre fizeram letras que funcionam em qualquer momento da vida. Assim, a redondinha “My Girl” funciona para uma desilusão amorosa de um adolescente com a mesma eficácia que mexe com o coração de quarentão separado. “What’s My Scene?” é um hino sem prazo de validade para qualquer pessoa que se sinta deslocada com o ambiente onde vive.
Algo semelhante poderia ser dito sobre praticamente cada uma das 19 canções tocadas na madrugada curitibana. E em todas, a estética power pop funcionava a favor da canção, fosse ela mais veloz, mais melódica ou mais “ganchuda”. Tanto que, para além dos hits, foi possível (re)descobrir o encanto e o poder de faixas menos conhecidas, como a assobiável “Another World”, o clima de Big Star turbinado de “Waking Up Tired” (que foi tocada apenas em Curitiba durante a turnê brasileira) ou mesmo o apelo hard e algo blueseiro de “Poison Pen”, com direito a solo empolgado de gaita de Brad Shepherd. E que canção preciosa que é “Night Must Fall”!
Merecem destaque, ainda, os backing vocals de Shepherd (que também faz contracantos) e do baixista Rick Grossman. É impressionante como eles conseguem manter os mesmos tom e volume dos registros em estúdio, sem que isso implique em perda de punch. E o batera Nik Rieth não deixou ninguém sentir saudade de Mark Kingsmill, que se aposentara em 2015, ensaiou um retorno à banda, mas encheu tanto o saco dos colegas que saiu de vez.
O local, apelidado por alguns curitibanos de “Reverberation Hall”, não era dos mais adequados: uma edificação de pé direito baixo, longa e estreita, com teto abobadado, mais propício para chás beneficentes ou bailes de debutantes que para shows de rock. Mas os técnicos de som fizeram milagre, de modo a garantir um som digno para quem não estivesse muito ao fundo (onde tudo virava uma maçaroca sonora) nem na cara do palco (onde o volume estourava e tornava a audição dolorosa). Mas como essa última área era uma espécie de “pista mega premium exclusive” (ou algo do tipo) e quase ninguém quis ir pro fundão, deu pra relevar numa boa.
Um leitor do Scream & Yell já escreveu duas vezes para relatar seu incômodo com menções à “meia-idade” em públicos de shows. É uma observação curiosa, já a expressão apenas caracteriza uma faixa etária, aquela que já passou dos 35/40, mas ainda está longe de ser chamada de terceira idade – faixa etária, inclusive, desse repórter, que nasceu em algum ponto da década de 1970. Não há qualquer depreciação implícita nela, mas de alguma maneira atestar a passagem do tempo parece gerar incômodo em algumas pessoas.
E por que a questão etária é importante aqui? Porque é surpreendente que uma banda que atingiu seu pico de popularidade há cerca de 30 anos continue convocando tanta gente que quer, sim, viver a nostalgia daquele período, mas que também se mantém aberta e interessada ao a banda pode oferecer hoje. Tanto é assim que o show se iniciou com “World of Pain”, do recente “Chariot of The Gods” (2022), e ninguém ficou de braços cruzados esperando a hora que tocassem algum hit. O entusiasmo foi genuíno, e se repetiu também na ótima faixa-título do álbum em questão e em “Equinox”, cantada pelo guitarrista Brad Shepherd.
Mais do que isso, é ainda mais revigorante ver que os quatro integrantes da banda acolhem a passagem do tempo sem que isso tire qualquer coisa da sua vitalidade. Para Dave Faulkner e companhia, o rock não tem a ver com ideias datadas e autodestrutivas como “espero morrer antes de ficar velho” ou “viva rápido, morra jovem”. Tem a ver com sentir-se vivo, e garantir a fruição das canções. E naquela noite chuvosa na capital paranaense, foi exatamente isso que eles entregaram.
Obrigado, Gurus. Come anytime.
Leonardo Vinhas é jornalista, escritor e produtor cultural. Colabora com o Scream & Yell desde 2000, onde também assina a coluna Conexão Latina. É também colaborador eventual dos sites Music Non Stop (Brasil) e Zona de Obras (Espanha).
Parabéns. Crítica muito bem escrita … e verdadeira. Essa autenticidade dos Hoodoo Gurus é o que, mesmo que de forma inconsciente aos fãs / ouvintes, faz com que tantas pessoas continuem os ouvindo e respeitando. A banda é fiel a ela mesma, se auto aceita e não tem medo de se transformar com o tempo. Sua música já passou por tantas mudanças. Ouvir Chariot of the Gods é muito diferente do que ouvir Stoneage Romeos ou mesmo Crank. Ainda assim há uma linha que une todo o trabalho de mais de 40 anos, que é o respeito e a autenticidade. Uma banda de verdade, que não precisa fazer média e nem mega teatro de luzes e pulseiras para entregar um ótimo espetáculo. Só música de excelente qualidade. Longa vida aos Hoodoo Gurus.