texto por Gabriel Pinheiro
É fevereiro, três da madrugada, seis graus. Cinco pessoas em situação de rua dormem, apesar do frio, até que uma Mercedes em alta velocidade interrompe a continuidade da vida de cada uma delas. A chegada da polícia revela um homem alcoolizado dentro do carro de luxo. Em sua companhia, uma garrafa de whisky vazia. Apesar do carro, das roupas e das feições bem cuidadas, aquele homem não é o proprietário do veículo, basta uma leitura superficial da situação para que os policiais entendam que uma cena foi criada, ali está um fac-símile de um milionário. Algo se esconde na madrugada fria da Índia, não que muitos se importem – a polícia incluída – em descobrir o quê. “A era imoral” é o primeiro romance da indiana Deepti Kapoor publicado no Brasil. Com tradução de Marcello Lino, o livro é um lançamento da Editora Intrínseca.
O homem no carro é Ajay, um jovem que, na infância, foi vendido para trabalhos domésticos, como forma de quitar um débito familiar. Para trás, ficaram a mãe e as duas irmãs – uma ainda a nascer. Uma série de desventuras e violências o levaram até aquele momento, até o banco do motorista de uma Mercedes envolvida em um atropelamento brutal. A linha do tempo da trajetória do personagem tem um ponto de virada decisivo: o contato com o jovem herdeiro Sunny Wadia.
Enquanto tenta encontrar e construir a própria voz, Sunny segue à sombra do pai, para quem o poder e o dinheiro são acompanhados pelo medo e pela violência. De uma inesperada e breve amizade, Ajay torna-se funcionário, espécie de braço direito, do playboy. Pouco a pouco, ele adentra e observa de um ponto privilegiado a vida da elite da capital indiana.
Se a vida de Ajay sofre uma virada de 180 graus ao conhecer Sunny, a vida do segundo também passa por uma turbulenta transformação no contato com Neda, uma jovem jornalista para quem o relacionamento com o filho de um mafioso indiano é um desvio moral difícil de defender. Não apenas para os outros, mas, principalmente, para si mesma.
“A era imoral” surpreende na suposta simplicidade de seu plot. Talvez você já tenha lido, visto ou ouvido uma história semelhante. De um homem que assume ou é culpado por um crime cometido por outro. Mas há muito mais por baixo da superfície desenhada por Deepti Kapoor.
A autora indiana constrói um romance vertiginoso, apesar do peso volumoso de suas páginas. São 560 páginas de um mergulho pela Índia contemporânea, onde desejo, dinheiro, vingança e corrupção se contaminam, definindo relações – de sexo, de afeto e, sobretudo, de poder. Acompanhando de maneira bem próxima estes três personagens centrais, a autora cria um retrato vívido do país, num daqueles casos de livros de virar uma página atrás da outra. É marcante o equilíbrio que ela encontra no trabalho, trazendo qualidades de um bom romance comercial, ao mesmo tempo em que constrói um verdadeiro épico familiar.
É interessante como Deepti narra uma mesma situação sucessivamente, a partir das experiências de cada um de seus protagonistas, e consegue engajar o leitor continuamente a cada retomada. Um mesmo acontecimento é sempre múltiplo e único para quem o experienciou. No entrelaçamento destas três histórias, a autora desenvolve personagens profundamente humanos, levando ao limite o conceito de moralidade. O que é moral? O que é imoral? Depende do ponto de vista. “A era imoral” é o primeiro volume de uma futura trilogia e eu mal posso esperar para ler mais de Deepti Kapoor.
– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.