texto por Renan Guerra
“Holy Spider” (2022), de Ali Abbasi, é o representante da Dinamarca na categoria Melhor Filme Estrangeiro no Oscar 2023 e entrou na lista preliminar de selecionados divulgada em dezembro. Coproduzido internacionalmente entre Alemanha, Dinamarca, França e Suécia, o filme se passa inteiramente no Irã e tem um elenco de atores iranianos, além do fato de Abassi também ser iraniano. E aí fica a pergunta: por que esse filme está sendo indicado pela Dinamarca? Pelo fato de que “Holy Spider” é o novo inimigo cultural dos iranianos e o próprio governo iraniano comparou o filme ao livro “Os Versos Satânicos”, de Salman Rushdie, dizendo que o filme desrespeita a cultura e a história do povo iraniano.
Para entender toda a polêmica é preciso entender a história que “Holy Spider” conta: na cidade de Mexede, considerada a capital espiritual do Irã, um assassino sai às ruas durante a noite para matar prostitutas. Chamado de “assassino de aranhas”, Saeed Hanaei (Mehdi Bajestani) acredita estar numa missão espiritual de limpar as ruas do pecado. Essa série de assassinatos se torna o foco de investigação da jornalista Arezoo Rahimi (Zar Amir Ebrahimi), que se aprofunda no submundo da cidade em busca da identidade do assassino.
A história de Saeed Hanaei é uma história real. Dentro do filme de Ali Abbasi há a ficcionalização da história da jornalista envolvida no caso, mas os fatos relacionados a Saeed são reais e ocorreram em Mexede no início dos anos 2000. Saeed matou 16 mulheres entre agosto de 2000 e julho de 2001, porém o grande diferencial do seu caso é que ele teve um forte apoio popular no Irã, com uma parcela da população considerando os seus assassinatos realmente como uma limpeza. Com isso, a religiosidade acaba se tornando um ponto importante da história: como uma crença pode ser usada para justificar a morte de tantas pessoas?
Para chegar em todas essas discussões, Ali Abassi constroi em “Holy Spider” um poderoso thriller que sabe jogar de forma extremamente inteligente com os meandros do gênero, criando tensão e mistério para o público. Tudo isso é bastante eficaz com as atuações certeiras de Mehdi Bajestani e Zar Amir Ebrahimi, que seguram a tensão da trama com atuações complexas e dúbias, que exponhem de forma concreta o que é viver no Irã pós-revolução (especialmente se você for mulher).
É importante destacar que o filme, obviamente, não foi gravado no Irã. As regras para o cinema iraniano são extremamente restritas – uma das normas, por exemplo, é que as atrizes não podem mostrar seu cabelo em cena, obviamente o filme de Abassi mostra bem mais que isso, e não tem medo de ser bastante gráfico – e jamais poderia ser produzido conforme as regras atuais do país.
Abassi começou a produzir “Holy Spider” após o sucesso de seu filme “Border” (2018), um excelente e estranho romance que vale a pena ser visto. No início da produção, Abassi até tentou gravar algumas cenas no Irã, mas desistiu logo da ideia. Posteriormente, as gravações foram sendo atrasadas em função da Covid-19 e aconteceu uma tentativa de se gravar o filme na Turquia, mas as autoridades turcas começaram a criar empecilhos para o filme – o que Abassi acredita ter a ver com as relações diplomáticas entre Turquia e Irã. No final das contas, o filme foi gravado na Jordânia, em 2021.
Abassi já sabia que o filme seria polêmico perante os iranianos e chegou até a alertar o ator Mehdi Bajestani sobre o risco que ele assumia ao topar fazer o papel do assassino de aranhas. Obviamente, toda a equipe do filme hoje em dia não vive no Irã, tanto que a Organização de Cinema Iraniano anunciou que se alguma pessoa de dentro do Irã estivesse envolvida no filme ela seria punida.
Hoje em dia quem enfrenta os ônus e bônus do filme é a atriz Zar Amir Ebrahimi. Ebrahimi é cidadã francesa desde 2017, uma vez que ela foi proibida de trabalhar no Irã quando nos anos 2000 uma sex tape sua foi roubada e divulgada ilegalmente, ela já estava um pouco acostumada com as reações exacerbadas de seu país de origem. Em 2022, Ebrahimi foi premiada como melhor atriz no Festival de Cannes e, após isso, em junho de 2022, ela afirmou a CNN que já tinha recebido mais de 200 ameaças a sua vida. Todas essas reações provam demais a necessidade de que “Holy Spider” exista e seja visto.
Ali Abbasi já afirmou que ele não queria fazer um filme de serial killer comum, mas sim que ele queria fazer um filme sobre como a nossa sociedade é assassina. E após a sessão de “Holy Spider” é normal que todos estejam absurdados, até enojados do que vemos na tela, e podemos até cair na onda de pensar que essa violência vem do outro, que ela está distante, lá no Irã. Mas a questão central de “Holy Spider” é como a nossa sociedade é construída de forma tão enraizada nesses jogos de poder e violência que o corpo do outro pode valer muito menos que o nosso.
Aqui no Brasil, é só lembrarmos da “Operação Tarântula”, nos anos 80, em que a Polícia Civil de São Paulo utilizou a pandemia de AIDS como um subterfúgio para “limpar as ruas da cidade” em uma ação que prendia, violentava e até matava travestis. Vale conferir o documentário “Temporada de Caça” (Rita Moreira, 1988) em que os entrevistados falam com a maior naturalidade como eles concordam e apoiam a matança de pessoas LGBTQIA+, pois isso limparia a cidade de São Paulo.
A barbárie está em nosso entorno constantemente e “Holy Spider” é uma lembrança disso, é o girar de uma chavinha que nos recorda o quanto toda essa violência está próxima da gente e só precisa de uma fagulha para vir à tona. No final das contas, Ali Abbasi faz um filmão que funciona maravilhosamente enquanto suspense e thriller, mas que termina deixando um gosto amargo na boca, nos lembrando que a realidade às vezes é bem mais assustadora que a ficção.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com Monkeybuzz e Revista Balaclava.