texto por Gabriel Pinheiro
Uma nova criança vem ao mundo. Um garotinho. Seus olhos escuros parecem flutuar em meio e em direção ao nada. O filho caçula de uma família no interior da França é um garoto “inadaptado”. Seu cérebro não se comunica inteiramente com o restante do corpo. Ele não enxerga, não anda e não fala. Não consegue interagir com o mundo que o circunda. Cabe àqueles em seu entorno, então, uma adaptação. “Se adaptar” (“S’adapter”, 2021, no original) é um romance de Clara Dupont-Monod, com tradução de Diego Grando. Lançamento da Dublinense, o livro foi enviado primeiramente para os assinantes do clube de assinaturas Histórias Irresistíveis, da livraria Dois Pontos.
Clara Dupont-Monod divide o livro em três partes, cada uma delas focada em crianças dessa família. A autora aposta numa voz narrativa inventiva e surpreendente – vale a pena mergulhar na leitura sem conhecê-la de antemão. Digamos que quem narra a história tem uma visão privilegiada sobre o mundo das crianças, o mundo das brincadeiras ao ar livre. “(…) nos atemos às crianças. É a história delas que queremos contar. (…) nós observamos suas vidas de cima. Há milhares de anos temos sido as testemunhas. As crianças são sempre as esquecidas das histórias”.
O irmão mais velho toma para si a responsabilidade pelo bem estar do menino. Bochecha com bochecha, descobre no tato uma forma de comunicação com a criança que aparentava estar tão alheia a tudo e a todos. Aos poucos, tenta decodificar os códigos possíveis de uma comunicação que precisa ser inventada, dia após dia. “O mais velho ficava cantarolando para ele, pois logo entendera que a audição, o único sentido que funcionava, era uma ferramenta extraordinária. O menino não conseguia enxergar, nem agarrar, nem falar, mas conseguia ouvir”.
Em paralelo, a irmã do meio vê o mundo em que vivia ser abruptamente transformado pela chegada do menino. Sentimentos conflituosos passam a conviver com a garota. A revolta por sentir que aquela criança sugava todas as forças de sua família. Pelo primogênito que parecia já não mais enxergá-la. A vergonha pelo olhar do mundo externo para sua família, maculada pela deficiência da criança recém chegada. “Se a do meio quisesse resumir a situação, o menino havia tomado a alegria dos seus pais, transformado sua infância e confiscado seu irmão mais velho”.
Muitos anos depois, um novo garoto nasce naquela família. Sem ter conhecido o menino inadaptado, essa nova criança se vê à sombra das marcas que esse irmão deixou em todos aqueles com quem conviveu. Enquanto busca desenvolver os laços com os mais velhos – agora dois adultos – ele fabula um convívio com aquele irmão desconhecido, uma ausência que segue sendo parte da família. “Porque antes dele tinha havido o sofrimento e depois dele não haveria nada. Ele se mantinha num entremeio. Era, ao mesmo tempo, um recomeço e uma continuidade, uma fratura e uma promessa”.
Dotada de uma linguagem sensível e poética, Clara Dupont-Monod constrói em “Se adaptar” um belo romance sobre a irmandade, sobre a infância e sobre a resiliência. Enquanto convivem – e se debatem – com o turbilhão de sentimentos que envolvem a infância e o crescimento, seus personagens acabam se redescobrindo, adaptando a si próprios na relação com aquela criança que, sem saber, causa uma pequena-gigante e íntima revolução.
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– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel. A foto de Lourenço Mutarelli é de Marcos Vilas Boas)