texto por João Paulo Barreto
Detentora de uma legião de admiradores que se estende aos quase cem anos de sua existência, a obra literária do britânico John Ronald Reuel Tolkien sempre foi considerada algo intangível em termos de adaptações para outras mídias, como o cinema. Desde que foi lançado, no final da década de 1930, “O Hobbit”, breve (e de linguagem bem simples) livro infantil que narrava as aventuras da criatura título em busca de ouro junto a um mago e a um grupo intrépido de anões, tinha esse status de inalcançável pela sétima arte. Seguida por sua continuação robusta e bem mais complexa, a trilogia de livros “O Senhor dos Anéis”, cujo primeiro foi lançado em 1954, esse farol de criatividade e apuro linguístico sempre desafiou a cineastas e roteirista na busca pela transposição às telas cinema de tamanha magnitude narrativa. Stanley Kubrick, durante os anos 1960, cogitou durante um período adaptar para o cinema (e, creiam, com os Beatles protagonizando); animações foram feitas, mas sem conseguir transmitir tudo o que os livros eram capazes de trazer aos seus leitores.
O tempo passou e, parafraseando Galadriel, uma das personagens principais, “História se tornou lenda. Lenda se tornou mito”. Durante quase 30 anos, nada de concreto se falou sobre uma possibilidade de adaptação. Até que surgiu um cineasta neozelandês que muito se assemelhava a um hobbit fisicamente. Peter Jackson assumiu, em 1997, a empreitada, ao lado de sua esposa, Fran Walsh, e sua parceira na produção, Philippa Boyens, de achar um estúdio que topasse bancar financeiramente, bem como de escrever o roteiro de uma adaptação das páginas de Tolkien para três mega produções, que seriam filmadas simultaneamente. A primeira, “A Sociedade do Anel”, estrearia de modo arrebatador em dezembro de 2001. O resto, para usar uma expressão clichê, é história. Ou, seguindo uma definição mais de acordo com esse universo, é uma história mágica e fantástica.
20 anos depois, em uma época bem diferente daquela no final do século passado, quando a internet ainda engatinhava e as nocivas redes sociais ainda não existiam de modo a derrubar produções que não se adéquem a formatos de agradabilidade geral, “O Senhor dos Anéis: Os Anéis do Poder” (2022) surge como uma superprodução feita para o streaming da gigantesca Amazon. No momento, em seu quinto capítulo (de um total de 8), e com uma segunda leva já confirmada para um futuro e ainda indefinido ano, a série adentra nos acontecimentos contidos nos apêndices da trilogia escrita por Tolkien. São narrativas que mostram personagens apenas citados durante a leitura dos três livros principais, mas que, na seção existente nas páginas contidas como um anexo aos livros, têm suas trajetórias delineadas de modo amplo e localizadas em um período que se passa milênios antes dos acontecimentos narrados nos filmes de Peter Jackson.
Assim, o espectador revisita nomes conhecidos, como os da citada Galadriel, elfa vivida por Cate Blanchet há 20 anos e que, aqui, ganha o rosto da jovem Morfydd Clark em sua presença enérgica e protagonista como personagem mais forte da série, cuja busca por Sauron impulsiona a trama. Do mesmo modo, conhecemos a versão ainda jovem de Elrond, elfo imortalizado por Hugo “Agente Smith” Weaving na trilogia clássica, e que retorna na pele do britânico Robert Aramayo, cuja semelhança com Weaving impressiona. De todos os personagens, estes dois são os únicos já conhecidos que ressurgem em novas versões. No mais, a série trabalha seu desenvolvimento trazendo a ascensão de Sauron, principal vilão da trilogia clássica, ainda em um período no qual não existiam os Anéis do Poder, objetos que seriam futuramente fundidos por ele e que aqueles familiarizados com a narrativa tolkieniana reconhecem como os catalisadores para toda a tragédia que leva à frente a trama de “O Senhor dos Anéis”.
Trata-se de uma série que, apesar não investir com a mesma intensidade no espetáculo visual calcado em paisagens reais da Nova Zelândia e no impacto emocional da trilha sonora de Howard Shore, como fez Peter Jackson no seu épico em três partes, consegue transportar para a Terra Média tanto os fãs que testemunharam há 20 anos a estreia das versões clássicas, quanto a nova geração que não estava presente à época, pois era muito jovem para ir às salas e entender seu peso narrativo, ou, enfim, estava entretida na sala ao lado com a exibição de “Harry Potter e a Pedra Filosofal” (2001).
Um dos maiores desafios enfrentados pelos criadores da série, porém, estava na recepção de um público que tem a internet como meio de resposta imediata em qualquer julgamento crítico feito. Cientes da necessidade de um roteiro mais inclusivo, os criadores do projeto, Patrick McKay e John D. Payne, precisaram adaptar o universo de Tolkien e seus habitantes para algo mais calcado na diversidade dos seres vivos que os habitam. Assim, diferente da fidelidade aos livros vista na trilogia de Peter Jackson, encontramos em “Os Anéis do Poder” uma série de personagens que, em suas descrições físicas, se diferem completamente do que Tolkien escreveu em suas páginas. Deste modo, temos ancestrais dos hobbits (aqui conhecidos como Harfoots, ou “pés peludos”) que são negros e de traços latinos. Do mesmo modo, um dos protagonistas, o elfo arqueiro Arondir, é vivido pelo ator de Porto Rico, Ismael Cruz Cordova que, diga-se de passagem, entrega um trabalho fenomenal.
Convém salientar que a escrita de Tolkien, feita há quase cem anos, baseava suas criações em seres oriundos de uma cultura nórdica, que tinha nos vikings parte de sua origem. Assim, mesmo diante de acusações de racismo, é importante observar esse contexto não como uma justificativa para seu universo só possuir seres brancos e, muitas vezes, de olhos claros, mas, sim, como uma percepção para este entendimento cultural daquela representação do aspecto nórdico.
Mas é com felicidade que se percebe a naturalidade com a qual “Os Anéis do Poder” insere em seu universo aquela variedade étnica, fazendo-nos vislumbrar que, naquele mundo fantasioso, mas que com discussões cuja metafórica relação com a realidade se faz presente (a rima de seu aspecto bélico, por exemplo, é palpável), os seres vivos formados por homens, mulheres, elfos, anões ou pés peludos de vária etnias ajudam, em sua co-existência, a salientar o poder representativo da humanidade na criação do professor Tolkien. Em algum lugar, o velhinho simpático sorri.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.