texto por Marcelo Costa
“Blonde”, de Andrew Dominik (2022) – Disponível no Netflix
“Foi um sonho louco (de doentio)”, reflete ‘Marilyn Monroe’ em determinado momento nauseante de “Blonde”, filme dramático, polêmico e pesado de Andrew Dominik baseado no romance de mesmo nome da escritora Joyce Carol Oates. Lançado em 2000, o livro “Blonde” costura fatos da vida de uma pessoa real, no caso o maior símbolo sexual da história do cinema, em meio a uma narrativa ficcional que anda na linha tênue que separa o que é verdade do que é invenção. Personagem mítico e eterno da cultura pop, ‘Marilyn’ é recriada no filme de Andrew Dominik com os principais trejeitos que marcam sua biografia conturbada destacando sua beleza estonteante, uma fragilidade dolorosa e uma inocência quase infantil, combinação explosiva numa cidade – que devora sonhadores todos os dias no café da manhã – dominada por homens podres. “Blonde” mergulha de corpo e alma nos dramas de ‘Marilyn’, e Dominik ultrapassa diversas vezes o limite do mau gosto abusando de nudez, closes, violência e dramas ao juntar fatos e fofocas da vida meteórica e melancólica da atriz, que morreu solitária de overdose de barbitúricos aos 36 anos, em 1962 (sim, 60 anos atrás!). “Um sonho louco (de doentio)” é uma bela metáfora para as quase 3 horas de “Blonde”, que, apesar do lodo existencial e da alegórica recriação dos homens repulsivos (redundância) que cerc(e)aram ‘Marilyn’, guarda um trunfo impressionante: Ana de Armas. A atriz cubana brilha de tal maneira numa entrega intensa que é praticamente impossível tirar os olhos da tela quando ela está em cena, o que deve ser uns 140 minutos dos 166 do filme, numa interpretação tão magnética (com jeitinho de Oscar) quanto diziam ser a própria ‘Marilyn’. Mito devorado pela cadeia alimentar sem escrúpulos da indústria do entretenimento – as passagens cruéis que recriam os bastidores do maravilhoso “Quanto Mais Quente Melhor” (1959), obra prima de Billy Wilder, são dolorosas –, uma inocente Marilyn Monroe é condenada (outra vez) a (três) abortos e uma nova overdose em “Blonde”, um filme cruel. Ela, assim como diversos anjos caídos devorados pela maldade humana, nunca terá paz. Que as futuras ‘Marilyns’ tenham…
Nota: 5
“Ennio, o Maestro”, de Giuseppe Tornatore (2022)
Um dos maiores nomes não só da música para o cinema, mas da música contemporânea, o italiano Ennio Morricone compôs mais de 500 trilhas sonoras para o cinema e TV. Porém, este belíssimo documentário de Giuseppe Tornatore (que teve Ennio como seu colaborador em filmes como “Cinema Paradiso”, de 1988, “Estamos Todos Bem”, de 1990, e “Malena”, de 2000) aprofunda, com muito carinho e reverencia, o olhar não apenas sobre a obra cinematográfica de Morricone, mas também suas investidas em música tonal e experimental, seus sucessos radiofônicos (incluindo uma colaboração com Joan Baez) e seus métodos de composição. De maneira doce, Ennio relembra seus dias de infância e adolescência, em que ele sonhava ser médico, mas seu pai, que havia sustentado a família tocando trompete, o intimou a seguir a mesma profissão. Ennio, porém, queria mais. Começou a estudar música e se formou com nota 9.5, mas da mesma forma que escondia o estudo avançado do pai, escondia dos amigos de partitura e de seus mestres que compunha trilhas para o cinema, uma arte menor, assinando com codinome para não ser descoberto. Porém, seu trabalho começou a ser requisitado, e ele teve que sair da coxia – em 1969, Ennio assinou a trilha sonora de 21 filmes! – com os sucessos incontestes das músicas e orquestrações que criava para os westerns spaguetti de Sergio Leone, obras primas como “Por Um Punhado de Dólares” (1964) e “Era Uma Vez no Oeste” (1969). Tornatore colheu depoimentos de vários musicistas contemporâneos de Ennio assim como de diretores, colaboradores e músicos como Pat Metheny e Mike Patton, James Hetfiled e Bruce Springsteen passando por Bernando Bertolucci, Quentin Tarantino, Wong Kar Wai, Dario Argento, John Williams e Hans Zimmer, entre muitos outros. De maneira mágica, Morricone decupa passagens icônicas de filmes que fez, como “Os Intocáveis” (1987), de Brian de Palma (da cena do carrinho de bebê na escada!), com todas as músicas na ponta dos dedos (e da memória) em um daqueles filmes mágicos que você assiste anotando diversos outros filmes para assistir, homenagem máxima a um mestre do cinema.
Nota: 9.5
“Athena”, de Romain Gavras (2022) – Disponível no Netflix
Idris, um adolescente de 13 anos de ascendência argelina, é espancado e assassinado por policiais. O vídeo do crime está circulando pelas redes sociais, e revoltando a população francesa como um todo, mas principalmente os moradores de Athena, conjunto residencial na periferia (que abriga em sua maioria negros e árabes) de uma grande cidade francesa onde vive a família do garoto, que tinha três irmãos, um soldado condecorado do exército francês (Abdel), um traficante de drogas (Moktar) e um líder comunitário (Karim), que fica completamente indignado com o assassinato racista do caçula da família. É Karim que reúne um grupo de rebeldes para vingar a morte do irmão, saqueando uma delegacia para roubar armas e planejando uma maneira de fazer com que a polícia entregue os assassinos de Idris. O irmão traficante, por sua vez, está mais preocupado com seu “negócio” enquanto Abdel tenta ser o mais racional possível diante da tragédia, buscando não derramar mais sangue, e batendo de frente com Karim, que quer ir até as últimas consequências. A relação destes três irmãos em um momento extremo é um barril de pólvora prestes a explodir, o que resulta não só em um dos grandes filmes de 2022, mas um dos filmes obrigatórios do mundo moderno. “Athena” é o filme necessário no momento certo. Filho de um dos cineastas mais políticos da história do cinema, Costa-Gavras (responsável por, entre outros, a obra prima “Z”, de 1968), Romain Gavras consegue exprimir toda a tensão do embate entre a força policial do Estado e os moradores que se rebelaram no conjunto residencial sem didatismo barato ou explicações gratuitas, acrescentando ainda um importante elemento que aprofunda de maneira genial o olhar sobre as rachaduras da sociedade atual – não só a francesa, mas mundial –, que não aprendeu nada com o passado. Daqueles filmes absolutamente brilhantes que deixam o espectador sem ar assim que acabam, “Athena” passa o recado com maestria: é preciso estar (muito) atento… e forte.
Nota: 10
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.
Cumpadi. Vi blonde. Achei intenso. E os dois outros entraram na lista. Athena verei hj se o debate e o jogo do Vasco assim o permitirem.
Assisti Ennio no espaço Augusta em setembro passado, durante a festa do cinema italiano. Imperdível. Ao final da exibição ninguém ousava se levantar ou sair da sala de projeção, todos em êxtase, comoção coletiva.
Além de Mestre na sua arte, Ennio apaixona como pessoa, fazendo com que queiramos yrazê-lo ora casa, pra vida.
Excelente documentário, adoraria rever mas não sei onde.