texto por Renan Guerra
Outubro de 2018. Bolsonaro é eleito Presidente do Brasil no segundo turno eleitoral. É nesse momento que começamos a acompanhar o cotidiano dos Martins, uma família negra da periferia de Contagem, Minas Gerais. “Marte Um” (2022), novo filme de Gabriel Martins, é um conto familiar sobre afeto, compreensão e aceitação e tem feito sucesso pelos festivais em que passou. Em exibição nos cinemas brasileiros, o filme foi o escolhido para representar o Brasil na corrida pelo Oscar de Melhor Filme Internacional de 2023.
O ponto central de “Marte Um” é que iremos acompanhar um recorte de tempo da vida dessa família. O pai Wellington (Carlos Francisco) é porteiro de um condomínio e participa de reuniões do AA para lidar com seu alcoolismo. A mãe Tércia (Rejane Faria) é uma diarista que, após cair em uma pegadinha de televisão, passa a acreditar que está amaldiçoada, atraindo coisas ruins para quem se aproxima dela. A filha mais velha, Eunice (Camilla Damião), estuda direito e planeja mudar-se de casa para morar com a namorada. Já o filho mais novo, o pré-adolescente Devinho (Cícero Lucas), passa a alimentar o sonho de participar de uma missão tripulada para colonizar Marte em 2030, a Marte Um que dá título ao filme.
Essas questões irão ser costuradas tanto por momentos em que acompanhamos cada personagem em seu cotidiano a parte da família quanto em momentos coletivos. Nos momentos em que vemos eles em outros ambientes, se destacam as participações especiais de Tokinho, que interpreta ele mesmo como um dos patrões de Tércia, e do ex-jogador Juan Pablo Sorín, que jogou no River Plate (Argentina), Juventus (Italia), mas fez fama em três passagens pelo Cruzeiro, e participa como um dos moradores do condomínio em que Wellington trabalha. Nos momentos conjuntos, veremos a família reunida em celebrações como aniversário, Natal, almoços e jantares e até jogos de cartas em família. A magia de “Marte Um” está na delicadeza com que o diretor e roteirista Gabriel Martins filma e constrói cada um desses momentos.
Cada personagem da família Martins é bem delineado e construído com complexidade. Ao longo do filme vamos nos tornando íntimos dos quatro e passamos a entender seus medos, suas dúvidas e seus sonhos. E as relações vão ganhando mais profundidade, seja em Eunice tentando viver a sua verdade sem perder a sua família, seja Devinho cada dia menos interessado no futebol (um sonho de seu pai) e cada vez mais encantado com o céu e com a astrofísica, enquanto assiste vídeos do astrofísico Neil deGrasse Tyson. Tudo é bem amarrado e faz com que o espectador se sinta cada vez mais parte desse núcleo familiar.
Além disso, é muito interessante a construção dessa família na tela. O nosso audiovisual brasileiro tem uma falha real na hora de representar famílias negras, elas quase sempre aparecem de forma incompleta e, quando aparecem, servem a temáticas de violência ou de discussão racial, são poucos os exemplares que filmam famílias negras existindo em todas as suas outras complexidades e pormenores. E, nesse sentido, “Marte Um” é um alento, pois é uma família negra tendo uma vida comum, existindo, aprendendo e se entendendo em suas particularidades afetivas e amorosas.
Aliás, a beleza de “Marte Um” reside na construção de afetos ao longo do filme, tudo isso em contraponto a essa tensão violenta que nos foi imposta no governo Bolsonaro. Os tópicos abordados no filme poderiam facilmente gerar um filme denso e dramático, passando por questões como homofobia, racismo, alcoolismo e a falta de seguridade social no país, porém a escolha aqui é ir por outro lado. Ao invés do drama, do sofrimento ou até mesmo da ironia, o filme de Gabriel Martins é construído a partir do afeto, do apoio mútuo e da compreensão do outro. Em tempos de tanto cinismo e desânimo, “Marte Um” acaba sendo como um abraço carinhoso no espectador.
“Marte Um” ganhou quatro prêmios no Festival de Gramado – Melhor Roteiro, Melhor Filme por Júri Popular, Melhor Trilha Sonora e Prêmio Especial do Juri – e agora tem uma campanha ampla pela frente até para chegar ao Oscar – e sabemos que por lá a questão pode ser, muitas vezes, de dinheiro e politicagem mais do que qualidade. De todo modo, por aqui a dica é você assistir ao filme e espalhar sua história por ai. “Marte Um” é um filme acessível, delicado e que precisa ser visto por mais e mais gente, para que tantos outros sejam tocados pela beleza que reside aqui.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.