Especial – Direitos Humanos no Banquete dos Mendigos: o show que reivindicou liberdade em plena ditadura Médici

 reportagem especial por Lara Faria

Desde sua adolescência, o mineiro Xico Chaves sempre esteve diretamente ligado à luta secundarista em Brasília. Em 1969, aos 21 anos de idade, já tinha sido Presidente do Diretório de Artes da Universidade de Brasília (UnB), Presidente da Federação de Estudantes da UnB, Vice Presidente Nacional de Estudantes de Arquitetura e, naturalmente, alvo de perseguições do regime militar. Pelo papel que assumia como líder estudantil, e pelo contexto cada vez mais problemático para aqueles que se posicionavam politicamente a favor da liberdade de expressão em plena ditadura, Xico percebeu que a única maneira de fugir da sua iminente prisão era sair do país.

Segundo o artista plástico, “nessa época o movimento estudantil foi todo desmantelado e eu acabei indo para o Chile, onde fiquei um ano. Quando estava para sair do Brasil, achei necessário levar pelo menos um disco nacional significativo para lá. Eu já tinha ouvido bastante Gil, Caetano, Gal e queria levar algo novo. Aí fiquei entre ‘O Relógio Parou’, do Jorge Mautner e o disco ‘Lets Play That’, do Jards Macalé. Eu já tinha visto o Macalé tocando num festival do Amazonas e achei interessante aquele barbudo de óculos falando uns poemas que tinham muito a ver com o que eu escrevia, então levei o LP dele”.

Xico Chaves / Foto: Reprodução Brasil Visual

Coincidentemente, alguns anos depois seu caminho se cruzaria com o de Jards e resultaria em um dos maiores momentos da música popular no enfrentamento do regime civil-militar que comandava o país. Mas antes de conhecer Xico, Jards passava por momentos igualmente conturbados. Só que, ao invés de perseguição política, sofria com o desenvolvimento de sua carreira em ritmo muito mais lento do que seu espírito jovem e incansável de artista gostaria. Em 1972, Xico decide retornar ao Brasil e vai ao Rio de Janeiro. Mas, diferente do que imaginava ao embarcar no avião saindo de Santiago, dessa vez não seria recebido por seus antigos amigos.

“Quando voltei para cá não achei mais ninguém. Uns tinham sido presos, outros tinham sido mortos, outros estavam desaparecidos, e outros haviam se mudado para longe. Foi aí que lembrei de Ana Miranda, uma escritora que era como uma irmã para mim dos tempos de Brasília, e acabei ficando na casa dela. Lá era uma espécie de território livre. Chegava gente de todo canto, violões tocavam a noite inteira, composições eram pensadas sem parar… logo vi que estava em casa. E foi no meio desse borbulho criativo que conheci Macalé pessoalmente. Um dia eu estava na cozinha conversando sobre a vida e tinha um cara tocando violão dentro do armário da cozinha. De repente todo mundo saiu da casa, entrou num carro e falaram ‘vem Xico, vamos para a Poligram ver o disco novo do Macalé’. Eu achava que não conhecia ele pessoalmente, aí dentro desse carro a Ana Miranda olhou para trás e falou ‘Macalé, e aí, qual rua a gente entra?’ e aí eu vi que estava do lado dele o tempo todo. Era ele que estava tocando violão dentro do armário e com ele que eu estava conversando há tantos dias sobre música, arte e tantas outras questões. Mas como Jards tinha tirado a barba, eu não reconheci. A partir daí começamos uma linda história de criação artística e amizade”, conta o poeta.

Só que após gravar o disco “Aprender a Nadar”, a Polygram (novo nome da Philips na época, depois de Phonogram) já adiava há meses o seu lançamento. Não bastasse o atraso (o disco só sairia em 1974), em 1973 Macalé ainda acumulava embates, e consequentemente inimizades, com os executivos da gravadora por questões de direitos autorais. Mas Jards decidiu se movimentar diante da situação sem deixar de lado seu estilo irônico de ser.

Segundo ele, naquela época se faziam muitos shows beneficientes em nome de entidades, ONGs ou qualquer causa que estava precisando levantar fundos para ser socorrida. “Como eu tinha discutido com a gravadora e já estava de saco cheio de todo aquele mecanismo comercial dos empresários, achei que quem precisava ser socorrido naquele momento era eu. Aí eu decidi fazer de sacanagem um show em autobenefício, porque se é para estar ferrado melhor estar ferrado rindo, né? Dei a ideia para o Xico e ele topou me ajudar, já que manjava bem de produção de shows independentes na época”, conta Jards.

Entretanto, o que era para ser um evento singelo de essência cômica acabou se transformando em algo muito mais significativo, oficial e perigoso do que Jards imaginava, quando colocou como meta apenas conseguir pagar suas contas. Ao pedir um espaço para realizar o evento no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM), Macalé recebeu uma proposta irrecusável e que deu proporções completamente novas ao show.

Segundo Heloísa Aleixo Lustosa, diretora do MAM na época, “naquele ano nós estávamos planejando no museu, dentre vários outros eventos que envolviam artes visuais, literatura, cinema e música, uma comemoração do aniversário de 25 anos da carta de Declaração Universal dos Direitos Humanos, em nome da ONU. Então quando o Macalé pediu um espaço para realizar o show, logo vi que poderíamos juntar as duas propostas e fazer uma coisa só.”

Foto: Divulgação / ONU

A partir desse momento, Jards começa a contatar seus amigos. Afinal, apesar do show a princípio ter sido pensado para beneficiá-lo em um momento de pouco trabalho e retorno financeiro quase inexistente, seu desejo era abrir o palco para o maior número de músicos possível. E, com o aval para tocar no MAM, e a responsabilidade de realizar um evento em nome da ONU, Jards e Xico não conseguiriam fazer tudo sozinhos.

“O Macalé era amigo de todo mundo. Ele é um dos maiores articuladores que existem na música brasileira, ainda mais naquele período. Era um talento impressionante que ele tinha de agregar personalidades interessantes. O cara chamou Gal, Gil, Chico, Gonzaguinha, Dominguinhos, Raul Seixas, Luiz Melodia… foi uma loucura. Ele falava: ‘Sigam-me os bons.’(risos)”, afirma Xico.

Mas como celebrar um documento que toca diretamente em temas como tortura e liberdade de expressão em um dos momentos mais delicados do regime militar? E ainda: como promover um show envolvendo esses temas sem que os músicos e organizadores fossem acusados de armar um protesto político dentro de uma entidade conceituada como o MAM?

Para uma empreitada tão desafiadora quanto inédita, Jards juntou esse grupo de artistas e montou uma usina de trabalho em sua casa. A partir do momento que definiram o repertório, todo o show foi submetido à censura, que vetou quase 70% do espetáculo que seria apresentado em 13 de dezembro de 1973, quase 50 anos atrás.

Segundo Jards, “não me surpreendeu a censura, mas a gente ignorou boa parte dela. Pagamos para ver e o que não tinha como cantar a letra nós apenas tocávamos. Mas era algo muito forte para o momento. A gente escolheu alguns artigos da Declaração dos Direitos Humanos para ler e eles iam totalmente de encontro com o que os militares queriam e faziam na época. É muito louco que a princípio eu queria fazer uma piada com as gravadoras e com todo um sistema comercial com o qual eu não concordava, mas acabou se transformando em uma piada também contra a ditadura militar, e piada das graves”.

No fim, as consequências, que poderiam ter sido nefastas tanto para a vida profissional quanto pessoal de músicos que estavam ali não através de contratos de gravadoras ou empresários, acabaram sendo minimizadas por conta do peso de um órgão como a ONU frente ao poder dos militares. Mas não é como se a tensão não pairasse no ar.

“A gente estava esperando que aparecessem umas 600 pessoas e chegou no final do show já tinha umas 3000. Na hora que descemos para ir embora, estávamos cercados pela polícia e tivemos que sair escoltados por um corredor estreito cheio de policiais em volta. Só não baixaram o cacete na gente porque ia ser o equivalente a baixar o cacete na ONU. Imagina só bater em todo mundo em um evento da ONU. Não ia ter como, mas foi perigoso”, relembra Jards.

Além da escolta no final do show, era esperado que tivessem pessoas infiltradas, como era de praxe na época para eventos do tipo. E a presença desses vigilantes dificultava significativamente o registro do show em imagem. Afinal, o regime militar permitia que aquilo ocorresse para não entrar em conflito com a ONU, mas seria arriscado demais para o ‘estabelecimento da ordem’ ter que lidar com a ampla divulgação das ideias propagadas no espetáculo. Não à toa, o show não teve sequer uma linha publicada nos jornais da época. Mas, por outro lado, os artistas conseguiram driblar a censura de maneira inteligentíssima e registrá-lo em um vídeo que não ficou bom o suficiente como registro em imagem, mas que era suficiente para transformar o show em álbum.

Conforme conta Xico, “Tivemos a sorte que uma das bandas levou um equipamento de gravação, senão a gente nem tinha registrado nada. Teve uma hora que uns policiais questionaram a câmera, mas o pessoal da parte técnica conseguiu convencê-los que era algum aparelho de iluminação do show. Depois disso, para tirar a fita do MAM foi uma epopeia. Pouca gente sabe como ela saiu de lá, e o menino que estava com a fita teve que sumir por um tempo”.

Capa original do álbum “O Banquete dos Mendigos”, de 1979

Após a poeira baixar, em 1974, Jards e Xico recuperaram as gravações e decidiram achar uma gravadora para lançar o show em disco. Batendo de porta em porta, recebem inúmeras recusas até que o jovem compositor Vitor Martins, um dos responsáveis pela gravadora RCA-Victor, resolve aceitar a batata quente. A dupla edita as quatro horas de show transformando-o em um disco duplo, mas o objetivo ali não era lucrar com o “Banquete dos Mendigos”, e sim impedir que o momento caísse no esquecimento.

“O disco foi censurado durante uns 6 anos até conseguirmos a liberação (em 1979). No fim eu não ganhei um puto, ainda perdi porque tivemos que pagar produção, todo o pessoal da parte técnica… aquela coisa. Mas que bom que foi assim. Foi um espetáculo realmente incrível. O momento exigia aquilo”, diz Jards.

A versão original do álbum “O Banquete dos Mendigos”, que saiu em vinil duplo em 1979, trazia 21 faixas no primeiro disco e 14 no segundo. A capa, de Rubens Gerchman, trazia uma reprodução do quadro “A Última Ceia”, de Leonardo da Vinci. Somente em 2015, a gravação do show foi lançada na íntegra, numa caixa de três CDs e, posteriormente, em três vinis, com o título “Direitos Humanos no Banquete dos Mendigos” e 44 faixas (é essa versão final que está disponível em streaming em todas as plataformas).

No repertório, muitos clássicos. Quase todos os artistas cantaram três canções. Há Paulinho da Viola cantando “Dança da Solidão”, Jorge Mautner interpretando “Maracatu Atômico”, Luiz Melodia numa dobradinha matadora (“Vale Quanto Pesa” e “Pérola Negra”), Raul Seixas cantando “Ouro de Tolo”, “Mosca na Sopa” e “Cachorro Urubu” (do verso “Todo jornal que eu leio / Me diz que a gente já era / Que já não é mais primavera / Oh, baby, a gente ainda nem começou”), Chico Buarque interpretando “Bom Conselho” e “Jorge Maravilha”, hino de “Julinho da Adelaide”, passando por Milton (“Nada Será Como Antes”), o próprio Jards (“Anjo Exterminador”), Dominguinhos (“Lamento Sertanejo”) e Gal (“Da Maior Importância”) num registro absolutamente histórico.

Uma das artes da capa da reedição de “Direitos Humanos no Banquete dos Mendigos”, 2015

Assim, no final das contas o que era para ser uma grande ironia ao estilo de Jards acabou se transformando no primeiro show de grande dimensão que bateu de frente com a ditadura militar e em um grande símbolo de resistência criativa de uma juventude que não aguentava mais a repressão.

Lara Faria é jornalista formada pela Faculdade Cásper Líbero e integra o time de comunicação da Omega Energia Renovável. Apaixonada por comunicação e cultura brasileira. A reportagem “Direitos Humanos no Banquete dos Mendigos: o show que reivindicou liberdade em plena ditadura Médici” https://osditosmalditos.com.br/integrou seu projeto de conclusão de curso, o site “Os Ditos Malditos”. A foto que abre o texto é da ONU News / Daniela Gross.

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