texto, fotos e vídeos por Bruno Capelas
Enquanto gênero, o rock nasceu jovem, mas hoje se descobre velho. Para seus aficionados, lidar com a passagem do tempo pode ser um exercício difícil, mas interessante. Uma banda que retorna aos palcos anos após seu auge criativo para comemorar uma efeméride, por exemplo, propõe a seus fãs um dilema existencial: será que aquela velha chama ainda é a mesma? Ou será que num reencontro já não seja mais “isso”?
No caso do Cascadura, com longa ficha corrida de bons serviços prestados ao mundo do rock’n’roll, talvez nem houvesse esse compromisso. No dia 18 de agosto, a banda fez em São Paulo o quarto show de uma turnê curta, dedicada apenas a comemorar um grande feito: os 30 anos da estreia do grupo, que transitou com delicadeza do hard rock ao pop perfeito ao longo de sua carreira, interrompida em 2015 – e retomada apenas de maneira episódica em 2018 com o single “Todas as Ondas”.
Mais: após duas noites em Salvador e uma em Feira de Santana, a data de São Paulo foi anunciada como o “último show do Cascadura”. Somadas as participações especiais de Teago Oliveira (Maglore), Felipe Machado (Viper) e Martin Mendonça (que tocou na banda nos anos 2000 e hoje é fiel escudeiro de Pitty), o clima era de “Last Waltz baiana” na Casa Rockambole (o antigo Centro Cultural Rio Verde).
Como se não fosse suficiente, a abertura coube ainda a outro nome jovem da cena soteropolitana: Ricardo Caian (ou melhor, só Caian), autor do recém-lançado “Paixão e Outras Drogas” (que ele comentou faixa a faixa aqui no Scream & Yell). Falante pelos cotovelos, Caian subiu a temperatura da fria noite paulistana em uma apresentação carismática, calcada em toques de rock clássico, amor & sofrimento derramados aos montes e uma releitura esperta de “Amor, Meu Grande Amor”, da incrível Ângela Rô Rô. De quebra, ainda trouxe a tiracolo LF, um dos vários baixistas que o Cascadura teve ao longo de três décadas.
A formação da noite, porém, trazia o professor Fábio Cascadura (voz e guitarra) junto a Thiago Trad na bateria, Cadinho Almeida no baixo, e a dupla Du Txai e Cândido Sotto nas guitarras. Antes mesmo de subirem ao palco, a pista já estava quase cheia, mostrando que tinha muita gente com aquele verso – “ainda assim quero te ver” – revirando na cabeça. De partida, não foi preciso nem contar três músicas para saber que o reencontro se fazia mais que justificado: enfileiradas, “Caim”, “12 de Outubro” e “Senhor das Moscas” mostraram que a tônica da noite seria emocionada, com guitarras no talo e público cantando junto, muitas vezes cobrindo a voz de Fábio.
Após a sequência de petardos de “Bogary” (2006), possivelmente a magnum opus do Cascadura, vieram três canções de “Aleluia”, último disco da banda, lançado em 2012. Um álbum duplo como se fazia antigamente, “Aleluia” pode ter passado despercebido na época de seu lançamento. Uma pena, pois como atestou o trio “Soteropolitana”, “Colombo” e a faixa-título, o disco merece ser redescoberto, ainda mais por exibir a sofisticação de Fábio Cascadura enquanto letrista – não é todo dia que alguém dá uma aula de história enquanto faz uma canção pop. (O que não deveria ser uma surpresa, dado que Fábio é acadêmico do assunto e botou ponto (ou ponto-e-vírgula?) à carreira da banda para se dedicar à pesquisa no exterior, mas nem todo talento que a gente tem na vida se aproveita de múltiplas formas).
Foi um começo de show cheio de calor – e se precisasse de mais, o sol já estava pronto para iluminar o dia com “Wendy”. Na plateia, um emocionado Teago Oliveira gritava para quem quisesse ouvir: “a banda da minha vida! não existiria Maglore sem Cascadura”. Um carinho que ele mesmo demonstrou quando subiu ao palco para cantar “Juntos Somos Nós”, uma pop song irretocável para casais apaixonados com certa referência beatle – explicitada quando Teago se uniu a Cândido na divisão de um microfone para fazer backing vocals, tal como se a Casa Rockambole fosse o palco do The Ed Sullivan Theater.
Não foi a única piscadela esperta da noite: logo antes, ao final da baladaça “Mesmo Estando do Outro Lado”, Fábio Cascadura e seus companheiros emendaram a canção com “Harvest Moon”, uma pepita do repertório maduro de Neil Young sobre amores antigos. E por falar em repertório maduro, foi bonito ver a aparição de “Todas as Ondas”, canto do cisne do grupo baiano embalado por uma linha de guitarra maravilhosa. Outro momento alto foi quando a banda remexeu nas gavetas da memórias de outrora e trouxe Felipe Machado para cantar “Elnora” (Felipe, fã confesso do Cascadura, regravou a canção em sua carreira solo).
Ao longo da noite, a sensação onipresente é de que, ao menos dentro da bonita sala da Casa Rockambole, tudo estava no seu devido lugar. Peso e leveza, raiva e dulçura, vários elementos se revezavam de maneira fluida, deixando a plateia entregue aos ensinamentos de Fábio Cascadura. Como bom maestro, ele soube como poucos reger seus alunos nos coros e fazer discursos quando foi preciso. Falou a favor de Lula, valorizou a ciência e contou histórias sobre a vida do Cascadura em São Paulo – em 2003, o grupo tentou a sorte na capital paulista para fazer acontecer a vida de rockstar. Não deu certo, mas rendeu uma longa caminhada por palcos paulistanos, lembrados como lista enciclopédica – “tocamos no Blackjack, no Outs, no Vegas, no CB, no Juke Joint, até no Inferno já fomos parar!”.
E se o assunto era religião, era a deixa para “O Batismo”, aquele momento que a gente lembra que é só rock mesmo, mas é disso que a gente gosta. Pouco depois, foi a vez de Martin Mendonça subir ao palco, em uma aparição tão caótica quanto incrível. Em pouco mais de dez minutos, o guitarrista tomou um tombo no palco ao final da sua “Contraluz” (no melhor estilo Prince, brincou Fábio), só para depois voltar à tona com toda a energia em um solo incrível para ajudar o professor Fábio a mostrar que bom mesmo é estar “Vivendo Em Grande Estilo”. Por falar em aula, o melhor discurso de Fábio ficou para o final, num conselho sábio que poderia até virar canção: “cuidem dos seus amores e permitam-se ser cuidados por eles”.
No final do show, a plateia mal tinha fôlego para seguir cantando – ainda mais depois da dobradinha “Ele, o Super Herói” e “Se Alguém o Ver Parado”, esta última com uma roda de pogo gentil para indie véio nenhum botar defeito. Depois de uma breve pausa e o protocolar pedido de bis, o caminho era óbvio: primeira escala em “Nicarágua”, rumo à tão sonhada “Queda Livre”. E como se ainda fosse preciso mais, ainda houve uma repetição de “Senhor das Moscas”, a canção dedicada a Omulu, o orixá que leva as doenças para longe – e ali, toda energia se transformou em potência, numa cura roqueira que mostra que tempos melhores já batem à porta.
No final da noite, se ainda restasse voz, alguém poderia até tentar entender como o Cascadura nunca estourou no grande público com alguma de suas inúmeras pepitas pop. Mas como diz outra canção emocionada, loucura seria falar desse sentimento nesse momento tão particular e sincero. Melhor do que pensar no que poderia ter sido é se entregar como nunca e torcer, quem sabe, por um novo reencontro com os baianos em um futuro não tão distante. E para quem sabe o refrão, caro leitor, é fácil saber como esse texto se encerra: pode crer que a história do Cascadura ainda faz muito sentido.
Setlist
Caim
12 de Outubro
Senhor das Moscas
Soteropolitana
Colombo
Aleluia
Wendy
Todas as Ondas
Elnora (com Felipe Machado)
Simples Como a Vida
Gigante
Mesmo Estando Do Outro Lado / Harvest Moon
Juntos Somos Nós (com Teago Oliveira)
Não Posso Julgar Ninguém
O Batismo
Minha Doce Senhora
Contraluz (com Martin Mendonça)
Vivendo em Grande Estilo (com Martin Mendonça e LF)
Retribuição
Desconsolado
Ele, o Super Herói
Se Alguém o Ver Parado
—
Nicarágua
Queda Livre
Senhor das Moscas (reprise)
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie, na Eldorado FM, e é autor de “Raios e Trovões – A história do fenômeno Castelo Rá-Tim-Bum”, editado pela Summus Editorial. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.