texto de Renan Guerra
Vitor Ramil é um compositor surpreendente, seu olhar perante o mundo é sempre bem-vindo, e nesse sentido também há algo de surpreendente quando ele se debruça sobre a obra de outros escritores. Isso já era claro desde “Ramilonga – A Estética do Frio”, de 1997, onde ele musicou poemas de poetas gaúchos como João Simões Lopes Neto e João da Cunha Vargas, nome esse que voltaria a aparecer no disco “Délibáb”, de 2010, ao lado do poeta argentino Jorge Luis Borges. De todo modo, esse era um universo masculino, de um outro Rio Grande do Sul.
Angélica Freitas é poeta de nosso tempo, nasceu em Pelotas, no RS, assim como Vitor Ramil, porém sua poesia habita o mundo. De todo modo, esse universo de outras questões de Angélica se comunica demais com as poéticas também frias e modernas de Vitor, que transformou suas canções em um show, “Avenida Angélica”, que chegamos a assistir aqui em São Paulo em 2019. O trabalho de Ramil se debruça essencialmente sobre os dois primeiros livros de Angélica, “Rilke Shake” (2007) e “Um útero é do tamanho de um punho” (2013).
O show como conhecemos acabou ganhando uma versão em disco, também chamada “Avenida Angélica” e gravada no mesmo formato ao vivo, em meio à reforma do Theatro Sete de Abril, em Pelotas. O lançamento do projeto tem apoio do edital da Natura Musical e seu formato mínimo capta muito bem aquilo que nos encantou no show ao vivo. Vitor Ramil consegue dar conta da poesia de Angélica Freitas de uma forma única. Seus poemas são pop e tortos, são historietas malucas, analogias inimagináveis em cenários cotidianos, é coisa de se ler e se encantar. Parecia trabalho árduo transformar isso em canções, porém Vitor faz isso com maestria: ele não só musicou esses poemas, como deixou-os pops e cantaroláveis.
“Avenida Angélica” pode ser um interessante caminho para se adentrar no universo de Angélica Freitas, assim como soa como uma nova viagem a se embarcar para quem já é leitor de sua obra. Além disso, também é interessante apresentação para quem ainda não se aventurou pelo universo musical de Vitor Ramil, pois de maneira curiosa, talvez esse seja seu trabalho mais pop e radiofônico. A faixa “R.C.”, por exemplo, emula as canções do rádio e conversa com os refrões pegajosos de Roberto Carlos; já “Mulher de Malandro” acena para o samba partido alto e “Mulher de Rollers” conversa com Chico Buarque em um dos momentos mais assobiáveis do állbum.
De todo modo, ainda assim “Avenida Angélica” conversa com as divertidas estranhezas do universo de Angélica Freitas: “Bigodinho” é cantada a capella, em divertido e curto poema; a deliciosa “Ítaca” é declamada pela própria Angélica; já “Siobhan” e “Rilke Shake” parecem naturalmente feitas para o universo de Ramil, com sua narrativa caudalosa e imagética – que outro artista conseguiria musicar os estranhos versos “Eu peço um Rilke shake / Engulo um toasted Blake / E danço que nem dervixe”? Vitor faz isso de forma tão natural quanto os versos originais de Angélica e parece completamente óbvio que se peça um Rilke Shake e que se embaralhem palavras em inglês e português.
“A mina de ouro de minha mãe e minha tia” é outro exemplo dessa narrativa que hibridiza os unviersos de Ramil e Freitas: essas mulheres atravessando a Lagoa dos Patos para vender Avon na Ilha da Feitoria, em Pelotas, em uma historieta que parece palpável, é como se nós conhecêssemos esse cenário mesmo sem nunca ter ido a Pelotas. “Família Vende Tudo” é outra dessas canções improváveis, como numa página de classificados, se vende produtos malucos, como “uma prima surrealista / uma ascendência italiana e golpista”, e depois de algumas poucas audições já ficamos com todos os itens à venda na cabeça.
“Avenida Angélica” é um borbulhante encontro entre dois artistas criativos, inteligentes e com um olhar único sobre o nosso tempo, por isso mesmo é tão interessante e tão vívido. É um disco para se descobrir aos poucos, para se investigar e se reouvir como quem relê e devora os poemas dos livros de Angélica. Ouça, reouça e depois veja o projeto completo também em vídeo no YouTube. Se deixe perder e perambular pela “Avenida Angélica” de Vitor Ramil.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.
oie! excelente leitura do vitor ramil, esse álbum é mesmo demais! só uma correção: o teatro de Pelotas é o Guarani. O teatro São Pedro é em Porto Alegre!
O teatro é o 7 de abril que está em reformas. Inclusive estava sem as cadeiras.
O Teatro é o Sete de abril! São Pedro é em Porto Alegre!!!!