texto por Renan Guerra
Uno (Luciano Pedro Jr) vem de uma família dona de uma frota de táxis e conversa com carros desde criança – e tenta se distanciar dessa comunicação na vida adulta. Uma lei que proíbe a circulação de carros antigos na cidade de Caruaru faz ele se reconectar com o universo dos automóveis e ele acaba reencontrando o antigo Uno Mille que era seu amigo de infância. Ao lado de seu tio Zé Macaco (Matheus Nachtergaele), eles transformam o Uninho no Carro Rei, um carro que fala, se apaixona e que pode modificar a vida de todos na cidade.
Espécie de farsa sci-fi, o filme brasileiro “Carro Rei” (2021), que chega agora aos cinemas, foi bastante comparado ao francês “Titane” (2021), uma vez que os dois passaram por festivais na mesma época trazendo carros que fazem sexo e que modificam a vida de seus protagonistas. Porém, tirando o universo automobilístico, o filme de Julia Ducournau é bem diferente desse de Renata Pinheiro (de “Amor, Plástico e Barulho”, 2013). Enquanto Ducournau opta por discussões que vão para o lado do que é o nosso corpo, o que nos define, o que somos enquanto humanos, questionando lógicas de gênero e de construções sociais, o filme brasileiro opta por um olhar que parte da narrativa homem versus máquina para falar de exploração capital, uso das cidades, sustentabilidade e luta de classes.
Em entrevista ao G1 Caruaru, a diretora explicou que a ideia de “Carro Rei” surgiu há oito anos atrás, “de uma observação onde eu moro, no Recife. Os carros têm muitos direitos, eles ocupam as calçadas. Os faróis agora parecem olhos, e a história nasceu dessa vontade de contar uma fábula em que os carros tivessem vida, pensassem, falassem… Isso não é tão distante da realidade”, explicou. O roteiro do filme foi desenvolvido por Renata em parceria com Sérgio Oliveira e Leo Pyrata e ganha camadas muito interessantes na tela.
Com um pé muito forte no real e personagens extremamente reconhecíveis em nosso cotidiano, o filme esteticamente foge do realismo e mergulha de forma genuína numa estética própria, que conversa com o universo da ficção científica e pinta Caruaru com tons esverdeados, escurecidos, que trazem certa estranheza ao olhar. Essa estranheza e esse desconforto é exacerbado pela trilha sonora perfeita de DJ Dolores, que traz esse clima de mistério para o filme. Além disso tudo, ainda há um cuidado muito interessante na criação da estética dos carros e no figurino dos personagens que são seduzidos por esses carros: o uso do azul e do amarelo como marca desses personagens é maravilhoso e se o filme se tornasse um sucesso cult, com certeza veríamos fantasias iguais aos servos do Carro Rei por aí.
Todas essas construções visuais são sustentadas por um elenco diverso e extremamente interessante. O jovem Luciano Pedro Jr dá conta das nuances de Uno, personagem complexo, perdido em seu dom de ouvir as lamúrias dos velhos carros. Já Jules* Elting (de “Vil, Má”) interpreta uma artista feminina que carimba símbolos contra o poder masculino em estátuas e locais públicos, e é ela a paixão do Carro Rei, criando algumas das cenas visualmente mais impactantes do filme. Adélio Lima (“Gonzaga: de Pai pra Filho“) é o pai de Uno e traz essas nuances de uma espécie de quase antagonista, criando algumas das tensões que vão desenvolver a narrativa da trama. Além disso, ainda há uma pequena, mas importante, participação de Tavinho Teixeira (“O Clube dos Canibais”).
De todo modo, o mais surpreendente do filme é Matheus Nachtergaele e seu Zé do Macaco. Parece chover no molhado falar do Nachtergaele, mas é maravilhosa a construção física que ele faz do personagem: o modo de andar, os gestos, o uso da voz, tudo constrói um personagem carismático, mas cheio de mistério e nuances, que acaba sendo central para o desenvolvimento da história de “Carro Rei”. Ele é como o pai dessas máquinas, ele é esse homem-máquina que se embrenha nesse universo complexo.
É melhor não se alongar para não contar detalhes demais do filme, pois uma das maravilhas de “Carro Rei” é ser surpreendido pela narrativa e pelo modo que a diretora Renata Pinheiro consegue amarrar discussões complexas em uma narrativa sedutora. O debate homem-máquina se desdobra nessas questões que envolvem a ocupação das cidades pelos carros, a influência da política e dos interesses das empresas sobre a vida das populações e como isso impacta nos trabalhadores e nas pessoas mais pobres. São questões que poderiam gerar um filme daqueles em que a tese é maior do que a narrativa, né? Mas não é esse o caso. Aqui as questões são suscitadas a partir de uma narrativa que sabe brincar com os meandros dos filmes de gênero e que se desenvolve de forma interessante e inteligente.
“Carro Rei” é um dos filmes mais criativos e inventivos do nosso cinema recente e é muito interessante poder ver artistas brasileiros podendo criar de forma livre, trazendo novas histórias e narrativas para a tela. Tente assistir o quanto antes no cinema!
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.