entrevista por Bruno Lisboa
“Tenho 30 anos, meu nome é Sofia Cupertino e hoje sou cantora, compositora e professora de canto de Belo Horizonte”, conta Sofia na primeira resposta dessa entrevista. E prossegue: “Sou feminista: é impossível ser cantora e compositora sem enfrentar e celebrar ser mulher no contexto Brasil/ Minas Gerais no séc. XXI”, antecipando ao leitor imagens que ele encontrará em “Venusiana”, seu recém-lançado disco de estreia.
Apesar de estar debutando de maneira solo agora, Sofia já tem bastante estrada, tendo dividido um álbum com Sol Bueno e Ana F., “Inventário de Mulheres Possíveis” (2020), um EP com o Projeto Alpercata (“Vela Aberta”, 2016) e participado do terceiro álbum do grupo Carona Brasil, “De lá pra cá – Daqui prali” (2015). Seu currículo aina exibe apresentações em eventos como Sonora Festival, Caixa Acústica, Sarau Tranquilo BH, Projeto Elas, Palco Cantautores e Música S.A..
Na entrevista e no faixa a faixa abaixo, ambos concedidos por e-mail, Sofia fala sobre “Venusiana” (“Essas músicas fazem parte de mim e da minha história de forma muito importante”), sobre o processo de gravação e as participações especiais do disco (“Reuni grandes musicistas que me inspiram muito e me sinto honrada de tê-las comigo nesse trabalho”) e diz acreditar na sororidade: “aprendi a priorizar mulheres na minha vida profissional e pessoal”. Com você, Sofia Cupertino.
Para o ouvinte de primeira hora gostaria que você se apresentasse, dizendo como se deu a sua relação com o universo da música e como ela foi pontual para que você decidisse se tornar uma musicista.
Bom, para me apresentar de forma clássica posso dizer que tenho 30 anos, meu nome é Sofia Cupertino e hoje sou cantora, compositora e professora de canto de Belo Horizonte. Para quem gosta mais de aspetos subjetivos posso dizer que sou fascinada pela voz e pela potência expressiva desse instrumento tão misterioso e peculiar, por isso me dedico a estudar e ensinar canto! Gosto de criar, isso me cura. Gosto de compor usando o violão – mesmo que não considere violonista. Gosto de escrever letras mas acho a parte mais difícil e por isso, quando ouço Joyce, Chico Buarque, Thiago Amud e as letras da jovem Iara Ferreira me toco profundamente. Gosto de escrever poesias, mas nunca publiquei. Sou feminista: é impossível ser cantora e compositora sem enfrentar e celebrar ser mulher no contexto Brasil/ Minas Gerais no séc. XXI. Acredito na sororidade: aprendi a priorizar mulheres na minha vida profissional e pessoal.
Em “Venusiana” você promove uma ode ao feminino. Nesse sentido quais são as suas intenções com esse trabalho? Quais são as referências que a ajudaram a nortear, conceitualmente, o EP?
Minha intenção com o disco é antes de tudo pessoal e artística. Já ouvi dizer que é egoísmo quando uma artista se coloca assim: mas também já ouvi dizer que o mergulho intenso na própria existência é um dos gestos mais verdadeiros e “artísticos” que há. Para além dessas “pequenas crises de valores morais”, o que posso dizer com honestidade é que “Venusiana” é um desejo que vem de longe, um projeto que eu precisava fazer por mim e que se não fizesse, sentiria sempre a sua falta. Uma necessidade real de registrar essas músicas que compus há muitos anos e que ainda não tiveram a oportunidade de serem arranjadas como eu sempre sonhei. Construí “Venusiana” na base do meu desejo, convidando pessoas que respeito e que gostaria de conviver e aprender com elas. Bom, quando um trabalho assim fica pronto, são as pessoas, as/os ouvintes que decidem “à que ele serve” e ao trabalho dão seu significado. Por isso, agora que o disco “Venusiana” está no mundo, entrego ao público a missão de significá-lo…
Musicalmente o álbum aposta no minimalismo e essa escolha faz com que se perceba, de forma nítida, a riqueza melódica das composições. E, para tanto, você reuniu um time consistente de músicos. Dessa feita, gostaria que você falasse sobre o processo de criação do disco, evidenciando como a produção do Rafael Macedo e das participações especiais a ajudaram a chegar ao resultado final.
Interessante ler aqui a palavra minimalista, quando na verdade eu escuto esse disco denso e cheia de camadas. Ouço nele tantas referências, nuances e detalhes, que a mim ele soa cheio e “vasto”. Talvez seja minimalista por ser quase a mesma instrumentação em todas as faixas. Essa foi uma condição que pedi ao Rafael Macedo, para que eu pudesse depois circular e reproduzir o disco tal como ele foi gravado ou bem próximo das gravações. Reuni sim, grandes musicistas que me inspiram muito e me sinto honrada de tê-las comigo nesse trabalho! Natália Mitre, percussionista fantástica e uma mulher de personalidade doce e bem humorada; Camila Rocha com sua precisão musical incrível no baixo acústico, sempre certeira. Temos Lauriza Anastácio, que toca violoncelo apaixonadamente e é muito expressiva; Emília Carneiro no clarinete e clarone trazendo os bons ventos do disco; Ricardo Jamal executando seu violão virtuoso. Nesse disco não poderia faltar de jeito nenhum a Luísa Lacerda que veio como participação especial coroando o disco com sua voz em “Deixa Eu” e o violão de “Ventre”, amiga preciosa a quem devo muito. Luísa sempre apoiou meu trabalho como compositora e foi minha ponte para conhecer tantas artistas cariocas como a própria Ilessi, uma das vozes mais particulares e potentes atuais. Ilê sempre gostou muito da música “Âncora” de forma que não podia lançar essa canção sem ela. Já o arranjador Rafael Macedo soube tirar o melhor dessas musicistas com os arranjos exuberantes que ele escreveu para o disco. O Rafa foi extremamente sensível ao entender o que eu desejava para o disco, se atentou a cada detalhe de cada letra e de cada música. Claro que, confiando no gosto e no ouvido do Rafa, por conhecer e adorar o seu trabalho, deixei que ele criasse livremente – e recriasse as músicas, renovando-as. Macedo foi parceiro indispensável e um dos principais responsáveis por esse disco ter se tornado a beleza que se tornou.
Apesar desse ser o “primeiro registro” solo você tem em sua trajetória diversas participações em festivais (“Sarau Tranquilo BH”, “Palco Cantautores”) e projetos ao lado de artistas como Déa Trancoso. De que forma tais realizações contribuíram para que você chegasse a esse momento da sua carreira?
Esse disco é fruto de toda essa trajetória, como uma casa construída tijolo por tijolo. Tudo que ouvi, estudei, partilhei, todos os shows que fiz e trocas que vivi e me constroem como artista hoje estão de alguma forma presentes ali. “Venusiana” é quase uma síntese ou um projeto de agradecimento a cada partilha e encontros que vieram marcando meu caminho. A maior parte das músicas do disco foram compostas há alguns anos e eu as toquei diversas vezes em muitas ocasiões, o que me fez maturá-las e entendê-las de forma íntima. Essas músicas fazem parte de mim e da minha história de forma muito importante. Além disso, claro, alguma maturidade musical, algum entendimento do que é lançar um disco nos dias de hoje, tudo isso só se conquista com experiência – sempre em construção. Durante até o próprio processo do disco, sua concepção e execução, permaneci aprendendo, crescendo e me tornando o que sou. Todo projeto artístico é um devir sem fim…
Com o lançamento recente de “Venusiana” e aquecimento do mercado dos shows quais são os seus planos futuros?
Planejamos viabilizar um show de lançamento ainda este ano, assim que possível e quem sabe, correr atrás de uma turnê.
Faixa a faixa: “Venusiana” por Sofia Cupertino
01. “Vidraça”: Foi a primeira música minha que tive coragem de gravar, tocando violão e cantando e postar nas redes sociais. Apenas o fiz motivada pela hashtag “Mulheres Criando” que tinha como intuito encher a internet de composições femininas. Fala sobre uma mulher estilhaçada, desiludida, mas que pretende sublimar a dor transformando-a em som e canção.
02. “Ventre”: É uma das canções mais densas do disco. Muitas pessoas ouvem a história de um aborto, sem saber se metafórico ou literal.
03. “Serventia”: É uma parceria com a escritora de contos feminista Luana Simonini que me ajudou a desenhar a história de uma mulher que passa por um episódio de violência doméstica. Pensamos na música como três atos: o primeiro, em que essa mulher se envolve amorosamente com o agressor, no segundo, ela percebe a violência a que está se submetendo e no terceiro e último ato, a mulher se rebela e vira o jogo, encerrando o ciclo.
04. “Lua Fina”: É até hoje a minha música mais tocada por outras cantoras em seus shows: o Coletivo Ana, Maíra Baldaia, Marina Clara, o grupo de canto coletivo de mulheres dirigido por Greyce Ornelas e tantas outras já levaram essa música para o palco. A canção é parceria com Deh Muss, que musicou a letra. “Lua Fina” ganhou para o disco “Venusiana” um arranjo exuberante em que um coro de mulheres vem reforçar o refrão “bendito é o nosso ventre”. Por curiosidade: a minha amiga e compositora Irene Bertachini entrou na igreja, no dia do seu casamento, com “Lua Fina” ao fundo. Realmente, uma música com a qual muitas mulheres se identificam por falar do útero como uma potência criadora, um símbolo de liberdade e não de aprisionamento à necessidade de procriar e cumprir a ideia de perfeição maternal, enquanto a sexualidde do ventre/vagina é demonizada e tratada como tabu. Na letra, o que tento dizer é que somos livres para procriar tanto quanto para não engravidar e que nosso ventre é bendito, sim, independentemente das nossas escolhas (que sejam sempre nossas escolhas e não do Estado ou dos homens).
05. “Âncora”: É uma canção introspectiva em que vejo uma mulher melancólica, que reconhece o vazio dos desencontros de que vida é feita. Apesar disso, sinto que esta mulher está numa encruzilhada e que deve escolher mergulhar nos mistérios da vida ou abandonar a si. Não podia deixar de convidar Ilessi para cantá-la no disco, pois quando esta inspiradora cantora carioca esteve em BH reunindo compositores (as) da cidade para seu show “Cantos pelo mundo afora” ela me deu a honra de cantar com ela esta canção. Neste show, Rafael Macedo nos acompanhou ao piano e este encontro deu origem ao arranjo que está no disco.
06. “Bambuzal”: Parceria com Greyce Ornelas, canção que criamos juntas no bambuzal da roça da minha mãe. Um cantinho sagrado, inspirador, em que as águas de um singelo córrego serpenteiam em silêncio entre os barrancos e folhagens. Eu e ela tentamos desenhar na letra a poesia que o bambuzal soprava em nossos ouvidos e a sensação refrescante de estar viva ali, entre seres não humanos da floresta. No disco, “Bambuzal653124 ganhou um arranjo divertido, saltitante, com a Natália tocando uma imbra sapeca e outras percussões graciosas.
07. “Deixa Eu”: Foi a única canção do disco encomendada para este fim. Iara Ferreira, compositora habilidosa do RJ, me deu de presente a letra que já foi pensada para ter como mote o universo feminino. Iara, em toda sua criatividade sensível, vislumbrou essa imagem de uma menina que sonha em ocupar lugares antes destinados aos homens. Na letra, o eu lírico feminino conversa com o pai e a mãe, contando como se inspira nas suas ídolas Marta e Ivone Lara. As palavras se encaixaram tão lindamente na melodia que parecem terem sido feitas ao mesmo tempo; além do arranjo que tornou a música doce e inspiradora sem perder a força de sua mensagem política.
– Bruno Lisboa escreve no Scream & Yell desde 2014. A foto que abre o texto é de Matheus Lustosa / Divulgação.