texto por Luciano Ferreira
Há vários James possíveis na carreira da mancuniana banda oitentista James. Numa discografia relativamente extensa, com 16 álbuns de estúdio (sem contar discos ao vivo e de b-sides) algo natural. Dito isto, fica mais fácil entender o James de “All the Colours of You” (2021), que não chega a ser tão distante do James de “Living in Extraordinary Times” (2018), e até de outros momentos, já que em determinado ponto do percurso a eletrônica passou a se tornar mais presente nas canções do grupo (na fase “Millionaires” e “Pleased to Meet You”, 1999/2001, respectivamente), antes embaladas primordialmente por guitarras.
A vida é composta de perdas e ganhos. Banda de hits poderosos, em determinado ponto do percurso o combo liderado pelo vocalista Tim Booth perdeu a capacidade de criar uma ou duas canções emblemáticas em seus álbuns. Bom e ruim. Hits tendem a obscurecer o conjunto ao destacar uma ou outra canção. Mas marcam não só a obra como um todo como a carreira e tornam-se momentos de maior ligação com o público em shows. A banda bem sabe disso, “Coming Home Pt.2”, faixa do álbum anterior soa como uma tentativa de reencontro com essa capacidade há tempos adormecida.
Num ponto da estrada em que não há necessidade de provações, o James pode se dar ao luxo de fazer o tipo de música que quiser e abordar em suas letras temas que podem soar incomodativos, mas eles não se furtam, querem radiografar o tempo presente com sua obra. A abertura de “All the Colours of You”, com a faixa “Zero”, por exemplo, vem como uma bofetada de jeito na cara do ouvinte ao alertar que “Todos nós vamos morrer / Essa é a verdade / Pare de medir o tempo / Por dinheiro e juventude”. Esqueça o sentido depressivo que a frase pode sugerir inicialmente, a necessidade de direcionar as atitudes tendo em mente a compreensão da fugacidade da existência é o tema central.
Gravado antes e durante a pandemia, o encontro do James de 2021 é com um grupo musicalmente dividido entre as batidas e detalhes eletrônicos e um orgânico mais intimista; e um letrista debruçado sobre temas de interesse universais e outros introspectivos, adentrando um universo musical de formato pop, mas alertando que o pop pode tratar de temas complexos (não será a primeira vez, nem a última).
Os espectro político é pra onde Booth, que vive nos Estados Unidos, direciona parte dos seus versos em algumas canções do novo álbum. A faixa “All the Colours of You” vem em forma de hino contra a discriminação racial ou de qualquer outro tipo: “Deus abençoe a América, hip-hip-hooray / O vermelho, o branco, preto e azul / Ame todas as cores, todas as cores de você”. É uma canção que surge no calor das manifestações antirracistas lideradas pelo movimento #BlackLivesMatter (#VidasNegrasImportam) que aconteceram nos Estados Unidos e em várias partes do mundo após o assassinato de George Floyd por um policial branco. Mais que isso, é o olhar perplexo de estar vivendo isolado numa pandemia enquanto políticos como Trump verbalizam suas insanidades: “Ele é a Ku Klux Klan, ele é a Ku Klux Klan / O presidente é o seu homem, ele é a Ku Klux Klan”.
No inusitado balanço funk eletrônico de “Recover”, a pandemia e as atitudes negacionistas são os temas que guiam os versos de Booth, que buscam trazer esperança: “Chore / Por aqueles que perdemos, que amamos / Lave suas mãos / Há um ladrão de nossa respiração / Fique por dentro / Fique vivo / Vai ficar tudo bem”, abalado pela perda do sogro. “Hush” é o olhar de alguém do ponto de vista do pós-morte, e “Wherever It Takes Us” traz um emaranhado de versos abstratos, inspirados por um pesadelo: “Ela está no multiverso / Vidas conectadas se sobrepondo como um / Como um corredor de espelhos / Vidas vividas e compartilhadas, vividas e compartilhadas/ Afetando-a agora”. O refrão é cantado em uníssono pelos vários integrantes da banda (nove atualmente), lhe dando um clima perto do épico. Na narrativa sobre um triângulo amoroso de “Isabella”, a banda esbarra no krautrock, na “batida Motorik” que conduz o arranjo.
Faz todo sentido a afirmação de Booth de que “gravado em uma realidade estranha e díspar, o álbum trouxe um conjunto único de desafios. É definitivamente um álbum diferente para nós. Fomos empurrados para algum lugar novo e isso é emocionante”, sobre o processo de gravação feito em separado. À medida que se adentra e aprofunda em “All the Colours of You” é que se percebe que a aparente simplicidade esconde uma complexidade, principalmente de temas (alguns bem pesados), o que explica a frase do vocalista para descrever o disco que, dentre tantos, é uma fotografia de seu tempo com as suas diversas matizes.
– Luciano Ferreira é editor e redator na empresa Urge :: A Arte nos conforta e colabora com o Scream & Yell.
Leia também
– James entregou aos paulistanos uma das apresentações mais empolgantes do ano de 2012