entrevista por Bruno Lisboa
Natural de São João Del Rei, Minas Gerais, Rafael Carvalho ganhou notoriedade na cena belo horizontina ao fazer parte do grupo Devise. Fundada em 2010, a banda apostava numa sonoridade que unia britpop e referências mineiras como Skank e Lô Borges. Porém, após seis anos de dedicação, Rafael deixou a banda, de forma amigável, para se dedicar a carreira de cirurgião vascular.
Passados quatro anos, Rafael decidiu retornar aos estúdios e se dedicar a um novo projeto, desta vez em formato solo, o Sliced Hearts. Gravado no ano passado e lançado em fevereiro deste ano, no EP “Solitude Daydream” o músico aposta numa sonoridade bucólica em ode a melancolia, fruto das influências folk / alt country de nomes como Neil Young, Wilco, Whiskeytown, Drive By Truckers, Tom Petty e outros.
Gravado no disputado Estúdio Ilha do Corvo (MG), o EP conta com produção, mixagem e masterização de Leonardo Marques (Transmissor). No hall das participações especiais, Rafael contou com as colaborações de Luís Couto (Devise), Rodrigo Costa nas guitarras, Bruno Bentes (da banda Radiotape) na bateria e Letícia Bassi nos vocais de apoio.
Na conversa abaixo, Rafael fala sobre as motivações que o levaram de volta ao universo da música, a crescente cena folk / alt country mineira, a cantora britânica Phoebe Bridgers, o papel social exercido pela música na atualidade e muito mais. Confira!
Anos atrás você deixou o posto de baixista da banda Devise para se dedicar a carreira de cirurgião vascular. Passado esse tempo, acredito eu, a música não deixou de ser parte do seu cotidiano. Nesse sentido, como foi o processo de composição e gravação deste novo trabalho? Quais as inspirações e motivações o levaram a retomar os estúdios de gravação?
Lembro-me de ter ficado muito frustrado em ter que deixar a Devise. Estávamos em pré-produção do segundo disco, a mil. Queria continuar, mas não podia segurar a banda com minhas limitações de agenda. Daí prometi para mim mesmo que eu daria um jeito de voltar a tocar o quanto antes. Obviamente não consegui tocar em bandas, minha rotina de trabalho era vertiginosa. Mas lembro de um dia escutar “Heart of Gold“, Neil Young no violão e gaita, e pensar: “Isso eu consigo fazer em casa!”. Comprei um novo violão e novas gaitas e comecei a compor, inspirado pelo próprio Young e tantos outros da cena folk e alt-country – Wilco, Drive-By Truckers, Tom Petty, Ryan Adams e seu antigo Whiskeytown… Nesse meio tempo também aprendi a tocar o banjo de cinco cordas e o lapsteel, instrumentos tradicionais dessa estética. Não posso dizer que sou bom em todos os instrumentos, mas o importante é que parece ter funcionado. Destaco também a participação inestimável do Luís Couto, da Devise, nesse processo, que me encorajou e me fez acreditar no potencial das composições desde o início. Inclusive, ele gravou boa parte das guitarras do EP. Também contei com a ajuda de mais amigos: Rodrigo Costa com guitarras, Bruno Bentes (Radiotape) na bateria, Letícia Bassi nos vocais de apoio. Além da produção e gravação no estúdio Ilha do Corvo, do Leonardo Marques, que foi essencial para encontrar a sonoridade que as músicas pediam.
Minas Gerais tem se tornado, gradualmente, a “meca” do alt country / folk nacional, com diversos artistas que exploram esta sonoridade. Como mineiro, acredito que a geografia do nosso estado montanhoso e o ar bucólico de cidades interioranas (como a sua natal) devam influenciar diretamente para isso. Mas para você como se deu a escolha por trilhar este caminho musical?
É muito peculiar o surgimento dessas bandas aqui em Minas – posso citar de cara duas que eu gosto muito, que são Moons e Midnight Mocca, ambas de Belo Horizonte. Há também o Young Lights, que hoje experimenta outras sonoridades, e o duo Julie and Gent. Acredito que esse revival global da música folk iniciado na década passada teve influência, mas acho que a semente não germina se o solo não for fértil. Acredito que nossas terras foram aradas para essa atmosfera bucólica. Grande parte das músicas surgiu na estrada, em meio às montanhas – constantemente dirijo entre a capital e São João del Rei. Junte a paisagem da rodovia com a bagagem emocional e a receita está pronta.
O EP tem em si uma sonoridade melancólica, que remete a um estado de paz espiritual. Tal escolha acaba por ser um contraponto ao caos contemporâneo em que vivemos. Para você qual é o papel social a ser exercido pela música na atualidade?
É engraçado porque, por mais que o mundo esteja em chamas, cada vez mais vejo a ascensão global de bandas e artistas com composições intimistas, muitas delas recheadas de tristeza e melancolia. Uma vez li um artigo em que a Phoebe Bridgers (outra grande influência) discutia sobre o gosto peculiar por música triste. Ela explicava que trata-se de uma maneira de se ver no outro e processar pensamentos que talvez nunca elaboraríamos sozinhos. Ironicamente, é uma maneira menos solitária de se sentir só. Talvez isso tenha a ver com a verdadeira epidemia de transtornos de saúde mental que vivemos hoje – pessoas cada vez mais deprimidas, ansiosas e solitárias. Mas é aí que a música entra – passar por essas emoções faz parte do processo de cura. Há vales que precisamos cruzar. Se tiver trilha sonora, menos mal.
– Bruno Lisboa é redator/colunista do O Poder do Resumão. Escreve no Scream & Yell desde 2014.