Texto por Renan Guerra
Giovani Cidreira e Josyara são dois dos nomes mais interessantes de uma fervilhante cena baiana contemporânea, por isso mesmo quando eles lançam um disco em conjunto é de se atentar. Em seus trabalhos solo, Giovani e Josyara apresentam outras possibilidades sonoras que vão além de qualquer clichê baiano, criando espécies de “Novas Bahias”, que vão além das ladeiras de axé, do manto tropicalista ou de todos os que antes vieram – não como negação, mas como deglutição para algo futuro.
“Estreite” (2020) é o disco que marca de forma intensa esse encontro e essas complexidades de cada um deles. O trabalho faz parte do projeto Joia Ao Vivo, braço da gravadora Joia Moderna, que conta com curadoria de Marcio Debelian e do DJ Zé Pedro. O Joia Ao Vivo tem patrocínio da Oi, e foi todo registrado no LabSonica, espaço de experimentações artísticas do Oi Futuro, no Rio de Janeiro.
Esse projeto já tem dois lançamentos anteriores: o primeiro disco reuniu Duda Brack, Julia Vargas e Juliana Linhares sob o título “Iara Ira”; o segundo trouxe Marina Íris ao lado de grandes nomes da literatura, como Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves e Elisa Lucinda.
Esse encontro proposto entre Giovani e Josyara é interessante, pois resultou num disco extremamente coeso e bem amarrado. Eles assinam faixas de forma solitária, não há nenhum composição conjunta, mesmo assim é muito curioso como, em suas particularidades, eles conseguem amarrar um diálogo tão bem estruturado em um disco que foge de qualquer classificação. Há ecos da MPB anos 70, há prenúncios de dream pop, há algo quase etéreo em determinadas faixas e há tensionamentos que levam para o lado do rock, tudo isso através de versos que pedem a nossa atenção.
Na faixa de abertura, Giovani Cidreira entoa “Se esse é o jeito desse mundo eu tô no meu direito” (“Palma”), para logo na canção seguinte, “Molha”, Josyara cantar “Você vai chover no deserto dos meus olhos / E se vai chover / Molho”. Nada aqui é simples ou óbvio. Há uma construção poética que nos leva pra dentro desse universo onírico dos dois artistas. Como amarra desse encontro está Junix 11, o produtor e arranjador, um dos responsáveis por essa unidade tão interessante – Junix é um dos integrantes do BaianaSystem, uma banda que é mais uma exemplo dessas novas possibilidades de Bahia.
Gravado entre o final de 2019 e o início de 2020, “Estreite” saiu ali quando as pessoas começavam a se recolher em suas casas, mesmo assim a sensação geral é de que muitos ainda não ouviram esse disco e não deram a devida atenção. Esse texto reforça um pedido: ouçam com atenção esse encontro, se deixem levar pelas minúcias, se percam nos versos de Giovani e Josyara.
Quase ao final do disco, Josyara canta: “Há de nascer o que for bom no horizonte do querer”, na simbólica “Virá”, provando de forma quase premonitória que esse é um disco do nosso tempo, quando na sequência ela fala “Eu sou você cuspindo fogo, Latino América, […] resplandecerá, ergam-se todos de uma vez”. Para então, a voz de Cidreira dizer: “Há de virar, um novo dia sempre há”.
Existencialista e difuso, “Estreite” é disco forte, de dois artistas complexos e que dizem muito sobre o futuro da nossa música brasileira. Giovani Cidreira e Josyara são negros, baianos e não estão tocando na rádio, não estão na sua TV e nem na live com milhões de espectadores; mas é na voz dos dois que ecoam novas possibilidades, novos olhares e a intensidade de quem cria com paixão.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz. A foto que abre o texto é de Rodrigo Tinoco / Divulgação