Soundtracks da Quarentena #02, por André Takeda
“Bob Dylan’s 49th Beard”, Wilco
Eu nunca tive planos de sair de casa. Não precisei de hashtags para ficar trancado em meu apartamento. As coisas simplesmente começaram a desmoronar e, de repente, me vi aqui. Sozinho, com meus discos do Bob Dylan porque você nunca gostou da voz do cara. Vai entender. Porra, parte da poesia do Dylan é justamente a sua voz. Eu deveria ter me dado conta antes. Alguém que não é capaz de entender a voz do Dylan jamais conseguiria ver beleza em pequenas imperfeições. Agora você finalmente vai poder escrever o seu “Blood on the Tracks”, você disse e eu tive certeza que essa foi a frase mais inteligente e cruel que tinha ouvido na vida. Você merece um Grammy, respondi devolvendo ironia com ironia. E não voltamos a nos ver, e então ficar em casa foi uma opção e, algumas semanas depois, obrigação. Até hoje. Eu precisava urgente de um barbeador. Eu sei, ninguém precisa urgente de um barbeador no meio de uma pandemia, mas eu ainda ouço você repetindo que nunca me gostou de barba. Por isso, coloquei um frasco de álcool gel no bolso e fui para a rua. Eram apenas três quadras até o supermercado mais próximo. E algo estranho aconteceu. A cada passo que eu dava a minha barba crescia mais. Eu olhava para os lados, procurando alguém para pedir ajuda, mas tudo o que encontrava eram as calçadas vazias. Nenhuma alma viva para me explicar o que estava acontecendo. Uma quadra, duas quadras, três quadras. Vi o meu reflexo na porta do supermercado e olhei fixamente para o meu rosto, a barba longa e grisalha, e me dei conta que sim, eu tinha acabado de escrever o meu “Blood on the Tracks”. Sorri para mim mesmo, deixei o supermercado para trás, e voltei para o meu apartamento com o único objetivo de esperar a quarentena passar.
Porque, acredite, ela vai passar.
Você encontra “Bob Dylan’s 49th Beard” no álbum “Alpha Mike Foxtrot” do Wilco.
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André Takeda (siga @andretakeda) é autor dos livros “O Clube dos Corações Solitários” (2001), “Cassino Hotel” (2004) e “A Menina do Castelinho de Jóias” (2011). É colaborador de primeira hora do Scream & Yell (leia a série “Um Adolescente nos anos 80” na primeira versão do site) e já liberou para download no site a coletânea de textos “Ao Vivo” em PDF. Baixe aqui. Favorite a playlist “Soundtracks da Quarentena” no Spotify!
Caiu uma lágrima aqui. Mas foi de felicidade em ler esse texto.