Texto e fotos por Nelson Oliveira
Segundo as tradições religiosas afrobrasileiras, um ano é regido pelo orixá homenageado em seu primeiro dia. O pontapé inicial de 2020 aconteceu numa quarta-feira, dia em que os adeptos do candomblé celebram Xangô. O regente do ano atual é conhecido por ser o deus dos trovões e, mesmo se você não acredita em nada disso, o estrondo causado por Larissa Luz no último domingo (5), em Salvador, pode colocar uma pulga atrás da orelha.
A cantora, que lançou o aclamado álbum “Trovão”, em 2019, foi o destaque da segunda edição do projeto Padrinhos da Música, em que artistas da nova geração da Bahia convidam suas referências musicais para apresentações ao vivo no Trapiche Barnabé. Com ares de aquecimento, a primeira noite, no fim de dezembro, colocou os rapazes do Àttooxxá ao lado de Carlinhos Brown e antecipou o que viria em janeiro. Para abrir o ano em grande estilo, Larissa Luz convidou a “madrinha” Margareth Menezes e Luedji Luna dividiu o palco com Lazzo Matumbi. Todos os shows, os seus preparativos e os bastidores darão origem a uma websérie audiovisual.
Os portões do Trapiche Barnabé foram abertos às 16 horas. O espaço, com capacidade para cerca de 3 mil lugares, ia sendo preenchido durante o dj set de Ubunto – outro artista da nova safra baiana – até que, aproximadamente às 18h30, Larissa Luz subiu ao palco. Ou melhor, quem apareceu primeiro foi a bailarina Tainara Cerqueira, coreógrafa do espetáculo, com a dança afro que abre o show de “Trovão”.
Como em parte significativa da tradição afrobaiana, voz e corpo, música e dança, artes visuais e artes cênicas caminham lado a lado. Larissa Luz, cantora e atriz – que tranquilamente também poderia ser bailarina – sabe disso muito bem e une todas estas formas de expressão em seu show, dirigido por Enio Nogueira, que também toca guitarra e comanda os synths produzidos por Rafa Dias, do Àttooxxá.
Filha de Iansã e Ogum, Larissa Luz abre “Trovão” com “Aceita”, canção que resgata as influências desses orixás e dá o tom de ressignificação das mitologias iorubás proposto em todo o disco. Essa iniciativa se dá tanto pelas composições da própria artista, que se utiliza de saudações religiosas do canbomblé, termos típicos de terreiro e linguagem da periferia para falar do empoderamento de mulheres negras, quanto pelas bases que unem o kuduro angolano, os dunduns, os atabaques e o xequerês nigerianos à percussão e batidas do pagodão, ritmo mais popular de Salvador, a cidade com maior população negra fora da África.
O show começa na mesma toada e segue assim, com “Lama”, “Nanã”, “Macumba”, “Gira” e “Hipnose”, que Larissa interpreta vigorosamente, como uma verdadeira força da natureza. Ao lado da expressividade que a fez brilhar no musical Elza, em que vive Elza Soares, a baiana se entrega à dança ao lado das bailarinas Tainara Cerqueira e Érica Ribeiro e às vezes até das percussionistas Dedê Fatuma e Ratinha. A “macumba pop” de Larissa Luz é, como diz a letra de “Nanã”, miserê – gíria baiana para indicar alguém que é “brabo” e manda muito bem no que faz.
Além de repertório próprio, que incluiu canções do álbum “Território Conquistado” (2017), como a faixa título do disco, “Meu Sexo” e trechos de “Descolonizada”, Larissa Luz cantou clássicos de afoxés, como “Emoriô” e “Patuscada de Gandhi”, de Gilberto Gil, e “Deixa a Gira Girar”, além de “Nossa Gente (Avisa Lá)”, do Olodum, que antecedeu o dueto com Margareth Menezes.
Aclamada pelo público, a rainha do afropop interpretou hits como “Faraó, Divindade do Egito”, “Elegibô”, “Toté de Maiangá” e “Dandalunda”. Margareth Menezes também abriu espaço para composições mais recentes e de teor político, lançadas em “Autêntica”, álbum de 2019, como “Capoeira Mundial”, gravada com participação de Larissa Luz, e “Mulher da Minha Vida”. A veterana cantora aproveitou o momento para fazer um discurso contra o establishment da axé music e celebrar o momento atual da música baiana. “Para mim tudo sempre foi mais difícil [do que para as cantoras brancas]. Dá muito orgulho ver essa nova geração de artistas negros se destacando”, declarou.
Outra integrante dessa “nova” Bahia é Luedji Luna, que é parceira de Larissa Luz na faixa “Climão” e no projeto Aya Bass. Por volta das 20h30, Luedji subiu ao palco para fazer a primeira apresentação do EP Mundo em Salvador. No trabalho, composto por remixes de seis faixas do álbum “Um Corpo no Mundo” (2017), feitos pelo DJ Nyack, a cantora flerta com o rap nacional e conta com as participações de nomes como Djonga, Rincon Sapiência e Tassia Reis.
No show de Salvador, contudo, esses rappers não estavam presentes: a única artista que gravou com Luedji Luna no EP e dividiu com ela o palco do Trapiche Barnabé foi Stefanie, veterana do hip hop paulistano, que rima no remix de “Cabô”. O rap também marcou presença com a Cronista do Morro e o coletivo Underismo, baianos da novíssima geração que foram convidados por Luedji e participaram com composições próprias.
Pelo grande número de convidados, que tiveram curtas intervenções, e a ausência de banda – havia apenas um DJ para soltar as bases –, o show de Luedji Luna acabou se assemelhando a um sarau. Este formato, que deve ser aperfeiçoado com o tempo, prejudicou um pouco a fluência da apresentação e, por outro lado, valorizou o “padrinho” da cantora.
Lazzo Matumbi ficou no palco por quase meia hora e, numa espécie de pocket show, mostrou algumas pérolas de seu repertório. Conhecido como “a voz da Bahia”, o cantor fez uma bela versão a cappella da poderosa e política “14 de Maio”, brincou com diversas técnicas vocais na introdução de “Do Jeito Que Seu Nego Gosta” e encerrou sua participação em dueto com Luedji, na romântica “Me Abraça e Me Beija”.
O encontro de gerações que aconteceu no Padrinhos da Música não é chuva passageira, como mostram as colaborações de Larissa Luz no último álbum de Margareth Menezes e os feats de Lazzo Matumbi e Luedji Luna em “Trovão”. O verão de Salvador ferverá com novas parcerias e nós acompanharemos as movimentações na cena baiana bem de perto.
– Nelson Oliveira é graduado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, atua como jornalista e fotógrafo, sobretudo nas áreas de esporte, cultura e comportamento. É diretor e editor-chefe da Calciopédia, site especializado em futebol italiano. Foi correspondente de Esportes para o Terra em Salvador e já frilou para Trivela e VICE.