Texto por Renan Guerra
A carreira musical de Clarice Falcão surgiu quase que ao mesmo tempo em que a sua carreira como atriz ganhou atenção do grande público, com o canal Porta dos Fundos, do qual ela era uma das atrizes do elenco original. Suas letras irônicas e debochadas foram vistas por muitos fãs, à época, como românticas e delicadas, o que a colocou na gôndola da “MPB Fofa”, ao lado de artistas como Mallu Magalhães, AnaVitória e Tiago Iorc, nomes que carregam séquitos de fãs e críticos em mesma proporção. No meio desse cenário, Clarice lançou dois discos (“Monomania”, de 2013, e “Problema Meu”, de 2016) que passeavam entre canções de amor e piadas que falavam sobre relacionamentos abusivos e descompensados, porém muita gente seguiu torcendo o nariz para seu universo voz e violão & psicopatia mascarada como fofura.
“Tem Conserto”, seu terceiro disco, deixa de lado qualquer fofura que poderia existir no voz e violão e se joga nas eletronices, levando Clarice para texturas bem mais complexas e interessantes, onde suas letras, ainda debochadas e quase autodepreciativas, ganham camadas mais profundas. Como um tour de force em busca de serotonina, o novo disco passeia por problemas de ordem da saúde mental, por relacionamentos, sexo e uma busca quase hedonista pela liberdade, tudo através da música eletrônica.
A produção de Lucas de Paiva (que divide a autoria de todas as canções com Clarice) colabora para que ela encontre novos públicos e novos olhares sobre sua própria arte. Querendo ou não, Clarice assumiu status de grande celebridade, tanto que o público acompanhava todos os fatos da vida íntima dela em revistas de fofoca – “Clarice namora fulano”, “Clarice termina com fulano”, “Clarice come coxinha no Leblon” – e isso sempre foi posto em paralelo com sua obra, gerando sempre uma constante de comparações entre cada fato da vida íntima dela com suas canções. Isso acontecia mesmo considerando-se que em muitos momentos suas narrativas poéticas assumiam mundos cartonescos, exagerados e hiper-realísticos, onde as relações eram dominadas por atitudes abusivas, descontroladas e megalomaníacas.
Visto esse histórico, “Tem Conserto” (capa acima) promove uma ruptura: Clarice saiu dos holofotes e sua vida mundana aparece cada vez menos nas publicações de famosos, bem como sua canções assumiram nuances mais cotidianas, mais banais, como a personagem completamente sem ânimo de sair da cama em “Horizontalmente” ou a busca por uma noite sem fim em “Só + 6”. Se antes as canções eram colocadas (mesmo que erroneamente) em paralelo com o universo idílico e quase abobalhado de Mallu Magalhães e AnaVitória, agora é possível traçarmos paralelo de sua obra com artistas mais soturnos e diversos, como NoPorn e Letrux.
Essa mudança de rota pode, de alguma forma, afugentar alguma parcela de público. Mesmo assim, a apresentação gratuita do disco no Sesc Pompeia, em São Paulo, mostrou que há um público que abraçou de forma interessante essa nova fase da cantora, um público que já sabia cantar as novas faixas e que torce por rupturas ainda maiores vindas de Clarice. “Tem Conserto” marca uma mudança forte e a coloca em um universo mais movediço, de risco e, por isso mesmo, muito mais interessante. Sua forma de lidar com saúde mental, amor e liberdade em um disco de 35 minutos é louvável, uma vez que há uma intimidade e um despudor cativante nas canções, que sabem rir de si mesmo, mas também sabem falar sério.
No ano passado, Clarice já havia lançado a soturna “Bad Trip”, que fala diretamente sobre essa bad trip da era-Bolsonaro, e essa soturnez reaparece no novo disco, como na triste “Morrer Tanto”. “Tem Conserto”, no entanto, parece quase ter um lado A (visto pela cantora como “a parte para chorar”) e um lado B (“a parte para transar”), sendo que ambas mostram uma Clarice mais vulnerável, mais calejada, mas que sabe que as coisas tem conserto, por mais fodidas que pareçam estar. Do lado A, “Minha Cabeça” e “Mal pra Saúde” tem um humor meio melancólico que cativa. Já no lado B, temos a excelente “Dia D”, espécie de mantra pré-coito que tem grandes chances de ser hit das baladas undergrounds. Já “CDJ” é divertidíssima e faz relembrar um refrão do NoPorn que dizia “adoro DJs, adoro DJs”.
Apesar de certa melancolia, o saldo final do disco é quase como uma mensagem positivamente hedonista de se cuidar, de se aproveitar o que há e viver ao máximo antes de ruir quaisquer coisas, pois pode não parecer, mas tudo ainda tem conserto – só ainda não sabemos como.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz. A foto que abre o texto é de Pedro Pinho / Divulgação.
Texto bem bacana. Nunca dei atenção a música da artista, mas por conta da resenha vou escutar o disco.