texto por Gustavo Almeida
Em uma bela construção que avança sobre a Praia da Urca está o atual Istituto Europeo Di Design. O prédio já foi hotel, cassino e até estúdio da TV Tupi, mas nessa noite o IED cedia o seu terraço para que Luiza Lian estendesse seu manto “Azul Moderno” sobre um cartão postal carioca. O evento tinha tom íntimo e o clima ali, aos pés do Pão de Açúcar, era típico do inverno carioca: temperatura amena, céu aberto e luz da lua. A natureza parecia fazer tudo ao seu alcance para engrandecer a noite de sua amiga e aprendiz. Afinal, o coração compositor de Luiza esteve sempre ligado à natureza e à espiritualidade.
Ano passado, Luiza Lian lançou seu terceiro álbum, “Azul Moderno”, provavelmente o mais sólido e importante disco de sua carreira, sendo escolhida pela Associação Paulista dos Críticos de Arte, a APCA, para levar o prêmio de Disco do Ano. Agora, na turnê dele, construiu um espetáculo visual que valoriza o que tem de mais precioso: suas melodias. Os desenhos vocais compostos por Luiza são originais, bonitos e transformam músicas de sonoridade eletrônica em cânticos ritualísticos, trabalhando a visualidade do show no mesmo sentido. Ela subiu ao palco no ritmo lento que a cerimônia dramática pedia, trazendo a força de cada voz feminina presente para dizer que eram “Mil Mulheres também”. Introduziu, então, a corporalidade dançante do ritual com sua saudação à Iemanjá em “Sou Yabá”, seguida de “Notícias do Japão”. Fechou o quarteto “Azul Moderno” de abertura do setlist com a contagiante “Iarinhas”, belíssima cantiga que envolveu de vez os presentes para cantar a natureza.
Foi a vez, então, de acenar rapidamente para o disco anterior com uma versão de “Tem Luz (Úmida V)”, antes de fazer mais um trio de “Azul Moderno”: “Requenta a Solidão no microondas”, disse na angústia incorporada aos objetos de “Geladeira”, deixando a rainha d’água cantar através de sua “voz boa” em “Mira”. Antes que se lançasse de vez em um bloco dedicado à “Oyá Tempo” (2017), trouxe “Santa Bárbara”, para purificar e iluminar sua noite, fazendo a performance vocal mais intensa da apresentação.
Agora sim, debruçada sobre as músicas do álbum anterior, “Oyá Tempo”, Luiza apresentou a sequência “Cadeira”, “Oyá”, “Flash (Úmido IV)” e “É Nela que Se Mora”. Apesar da estética de produção consistente, o pop-funk de “Oyá” foi o único momento a manter o alto nível de energia do show “Azul Moderno”. “Protetora” veio em seguida para ser a representante solitária do disco de estreia (“Luiza Lian”, 2015), colocando mais uma vez o clima místico no ar, suspenso antes pelo experimentalismo do segundo disco. A artista fez, então, sua fala em defesa da tolerância e das religiões de matriz africana. “Viva o rolê do amor”, gritou uma voz da plateia, para arrancar sorrisos inclusive da dona da noite.
Com a volta do repertório de “Azul Moderno”, ficava clara a diferença na força dos discos. “Pomba Gira do Luar” levantou as vozes e abriu caminho para que todos cantassem juntos a faixa que dá nome ao disco, estendendo coletivamente, como pede um ritual, o manto espiritual da cerimônia presidida por Luiza Lian. As canções de sua obra-prima têm uma característica ancestral, como cantigas religiosas, como se fossem feitas para serem entoadas em um uníssono coletivo. Ela encerrou a noite com “Vem Dizer Tchau” e seu hit “autotunado” “Tucum”, impulsionadas justamente pela energia das vozes que viam um belo espetáculo chegar ao fim.
Cada detalhe trabalhava em prol de um mesmo objetivo: fazer com que as pessoas fossem, nas palavras de Luiza, “energizadas”. A banda de um homem só Charles Tixier, produtor do disco, fazia um trabalho fenomenal nas sonoridades eletrônicas que modernizam o “Azul” da artista (como ela contou no Scream & Yell, deu o disco pronto para Tixier com uma recomendação: “Destrói tudo… para reconstruir”). Já a “banda visual” era composta por Amanda Amaral na iluminação, Bianca Turner nas projeções e Diogo Terra nos lasers, construindo juntos a cena que fazia da cantora uma entidade, flutuando seus cachos de luz pelo palco. Ela domina o espaço com voz e movimento, com a expressão de emoção serena que confere força à lideres espirituais.
Afinal era esse o papel de Luiza Lian: conduzir seu ritual, suspender a consciência do mundo externo para cantar coletivamente de corpo e alma. O charme delicado e íntimo do evento era confortável, mas faz lamentar o pequeno alcance de uma experiência tão completa, pois é um espetáculo que merece um palco e público bem maiores. Como diz a letra de “Flash (Úmido IV)”, ela “olha para as coisas como se fossem suas”, e realmente podem ser. Pelo visto no imenso Lollapalooza deste ano (do qual ela foi um dos destaques para o Scream & Yell) e neste show pequeno no IED, Luiza Lian domina qualquer palco e pode mais, muito mais.
– Gustavo Almeida é estudante de Comunicação Social na UFRJ e responsável pelo podcast Nos Palcos do Rio (ouça aqui). Os vídeos são do La Cumbuca! Confira outros vídeos dele deste show.
um dos nomes mais interessantes da cena atual. Mira é de arrepiar