entrevista por Renan Guerra
Vitor Hugo é vocalista do bloco Lua Vai e atua em diferentes frentes culturais na cidade de São Paulo, entre elas sendo programador do grupo Mundo Pensante. Nos últimos dois anos, ele produziu canções que mesclam pop, MPB e música eletrônica, no que se tornou Urbanú, nome que ele delega ao que chama de “obra-acúmulo”.
Essas canções estão reunidas no EP também chamado “Urbanú”, produzido por Curumin e com participações de nomes como Tulipa Ruiz, Anelis Assumpção, Saulo Duarte, Gustavo Ruiz, Zé Nigro e Gongom, que chega agora ao público acompanhado de videoclipes especiais para cada faixa.
A forma com que Vitor vislumbra São Paulo, os amores, as relações sexuais e outras coisas mais é o charme de sua estreia, que é marcada por uma fluidez cativante, quase que sensual. Bailarino, compositor, produtor e cantor, Urbanú também transformou as canções em peças visuais em parceria com Paulo Bueno (fotografia) e Uibirá Barelli (design), do Estúdio Diorama.
Na conversa abaixo, Vitor Hugo explica que música para ele é movimento e é sobre esses fluxos que batemos um papo via e-mail com o artista, onde buscamos entender um pouco mais sobre esse projeto. Conversamos sobre sexo, maconha, música, dança e mais, como você confere abaixo:
Você tem múltiplas atividades artísticas, mas qual foi o momento decisivo para que o seu projeto solo ganhasse forma?
Foi quando senti a urgência de buscar minha própria musicalidade e performar minhas composições. Ou quando tomei coragem de me chamar cantor, o que talvez seja a mesma coisa. Mas acredito que o Urbanú seja uma colagem de várias linguagens, e foi sendo criado junto com outros projetos que permeio, como a dança e o pagode que canto no Bloco Lua Vai.
Falando nessas múltiplas atividades, além da música, você também é bailarino. Como essa intersecção entre as artes acaba sendo formadora para as suas canções?
Música pra mim é movimento. É impossível transar música com o corpo rígido. Acho que a dança é elemento importante pra minha criação nesse sentido: é a partir da sensação no corpo que minha musicalidade nasce. É ação e reação no mesmo ciclo: gesto e acorde, coreografia e melodia. É o ato de dançar música. Essa minha experiência é fundamental também para minha presença no palco, e entender meu corpo como mídia absoluta da minha expressão.
A cidade é parte fundamental de seu trabalho solo, inclusive em seu nome artístico. Como é a sua relação com São Paulo e como isso se reflete na sua produção?
Eu me relaciono com São Paulo de forma íntima e profunda. Às vezes até controversa. Como minha casa de fato, onde eu nasci, cresci e ainda moro. Eu gosto desse ritmo intenso da metrópole, das pessoas e da interdependência entre nós. É o que mais me interessa nas cidades. Tentei fazer um EP-visual que trouxesse um pouco dessa atmosfera tecnológica e iluminada da noite paulistana, a qual eu sirvo como operário e promotor há anos. Urbanú (que não é meu nome artístico, mas o título dessa obra-acúmulo) é como eu sintetizo e exemplifico a minha urbanidade. Nua, e nada crua. Musicalmente isso se deu nos samplers e beats eletrônicos que swingam com os ritmos brasileiros, essa versatilidade que é o “entre” das coisas. Nos vídeos, a cidade aparece hora como cenário real, hora traduzida em peças gráficas, movimentos geométricos e pulsantes. Aquela sobreposição de prédios que altera o horizonte.
De que forma se deu a sua parceria de trabalho com o Curumin, produtor do EP?
De forma leve e conectada. Curumin é muito atento e generoso. É preciso ser generoso para ser atento. Quando iniciamos o processo eu mal sabia explicar de forma clara minhas intenções, e hoje sinto que ele conseguiu enxergar além dos ideais que eu inventava, indo atrás da minha verdade, apesar da assinatura bem marcada da sua musicalidade. Nós já somos amigos e parte da família há um tempo, mas o processo e o encontro com os mesmos estímulos só nos aproximou mais. Um honra e alegria tê-lo presente nisso.
O EP teve um processo de produção de quase dois anos, o que demandou esse tempo todo de construção?
Ah, diversos fatores, dos mais práticos aos mais complexos. Fazer um álbum custa bastante tempo e dinheiro, e produzir de forma independente às vezes demanda alguns intervalos para outros trabalhos intensivos acontecerem. De fato, dois anos é bastante tempo para 4 faixas, mas percebo que esse período foi importante para que as músicas e ideias decantassem, já que essa é uma linguagem tão nova para mim e minha primeira experiência em estúdio. O tempo da escuta é fundamental, aprendi isso com Curumin.
Você está há muitos anos à frente do Bloco Lua Vai, que homenageia o pagode dos anos 90. Como esse trabalho lá reflete na persona do Urbanú agora?
Eu já tentei separar os assuntos, mas percebo que me potencializo mais quando compreendo que é o mesmo corpo performando em todas essas frentes. Eu amo puxar o Lua Vai. Cantar pagode – além de ser um repertório muito familiar pra mim – promove uma troca emocionada e imediata com o público, o que me dá abertura e acolhida para me posicionar sobre diversos assuntos. E, além disso, enquanto eu estava fechado em estúdio produzindo o Urbanú, o Lua seguiu fazendo shows, me exercitando e trazendo experiências únicas de palco e performance. Cenas que eu jamais conseguiria resumir em palavras. A experiência com grandes públicos, como propõe projetos de carnaval, é arrebatadora e eu sempre me sinto atualizado. Acho que isso deve permear entre o Urbanú e as outras linguagens que eu possa criar ainda.
O EP conta com participações diversas e distintas. Como vocês chegaram a esse grupo de artistas tão díspares?
Como eu sempre digo por aí, minhas parcerias são criadas por dois critérios: admiração e afeto. Todxs que de alguma forma participaram do álbum somaram como amigxs e estimuladorxs. É minha turma, que bate um violão e compõe junto depois do almoço do mesmo jeito que entra em estúdio pra gravar alguns vocais. Dizem até que dá pra fazer música sozinhx, mas eu não saberia não.
Em que momento você decidiu por um projeto visual para acompanhar as canções? O projeto foi feito ao lado do Estúdio Diorama, como se deram essas gravações?
Eu sempre quis experimentar a criação de videoclipes, mas saquei que seria um projeto visual quando, em uma reunião de pré-produção com Curumin, decidimos que seria um EP e não um álbum padrão com 10 faixas ou mais. Quando entendi esse formato imediatamente soube que quereria trabalhar com Paulo Bueno (vídeo) e Uibirá Barelli (design), do então Estúdio Diorama. Ambos são pessoas que tenho um apreço antigo e que sempre esperei a brecha para trabalharmos juntos. As gravações dos 4 clipes e o projeto gráfico foram feitas em 4 meses, com baixíssimo orçamento e aposta e parceria altíssima dos meninos. Um processo intenso, que desaguou nas imagens e símbolos lindos que estão por aí.
As canções do EP são de certo modo românticas, mas tem uma sensualidade, que no visual se reflete na dança e no corpo, de forma quase sexual. Em tempos em que a caretice parece se instaurar, como você percebe a importância de se falar de forma liberta sobre o corpo e o sexo?
Eu gosto de sexo e gosto de falar sobre, e acho que seria inevitável não estampar esse assunto de alguma forma, inclusive por exercitar uma sexualidade que não é bem a recomendada nas cartilhas dos bons costumes. Todavia, eu reconheço que meu corpo e imagem fazem parte de um padrão estético que é mais aceito socialmente, então se for pra falar sobre formas de libertação do corpo e do sexo seria mais válido ver a obra fantástica da multi-artista Lina Pereira, mais conhecida como Linn da Quebrada, e sua parceira de estética e fundamento Jup do Bairro. Existem zilhares de artistas atualmente no Brasil que além de levantarem um discurso ultra necessário vivem diariamente com o seu corpo atravessado por essas “socio-fobias”, preconceitos e dominações, e pra mim representatividade tem ligação direta com lugar de fala. Talvez quando eu cite sexo no Urbanú seja para mostrar o gozo como algo plástico e delicioso, como receber um nude. Se eu acho importante? Muito. Se não estiver promovendo o exercício de uma sexualidade opressora, acho sempre importante validar os prazeres. Essa culpa ainda é o instrumento de muita doutrinação por aí. Mas de fato, artistas como as que eu citei tem mais a enriquecer nas discussões sobre essa libertação.
Nesse mesmo âmbito da liberdade, você também fala sem problemas sobre drogas no EP. Explorar esses temas com naturalidade nas canções foi uma escolha deliberada?
Não acho que eu fale sobre drogas, eu falo sobre maconha (risos). Foi uma escolha, mas também é algo que faz parte da minha rotina comum. Como você mesmo disse, tem a ver com naturalizar o assunto, até porque também existem pessoas que tem mais propriedade e urgência, como as mães de crianças dentro do espectro autista que necessitam de canabidiol. Irônico que, neste exato dia 05/05 que respondo às suas perguntas, seria votada pelo STF a descriminalização da maconha, que foi tirada da pauta de forma quase arbitrária para dar lugar a um projeto já aprovado que aumentaria mais a repressão, prevendo até internação compulsória. É mais do que urgente que essa discussão seja tratada com seriedade e naturalidade, porque todo mundo já ouviu falar de algum playboy de pele branca que fuma um do verde e eventualmente até passa pros amigos, mas sabemos que quem vai preso é o preto e pobre que foi pego com uma ponta (se é que tinha a ponta). Colocar-se como maconheirx e naturalizar esse assunto talvez até seja uma forma – embrionária – de não usar corpos marginalizados como bode expiatório para fumar o seu em paz e em segredo. É preciso se afirmar. E aproveitando: sim, eu fumo maconha.
Você já está com planos para um show de lançamento do Urbanú?
Planos sim, mas datas ainda não. Estamos agora no processo de levantar, montar o show como um todo. Acredito que lá pro fim do mês de julho já teremos algo a apresentar. Por enquanto dá pra ir esquentando com os clipes e faixas!
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz