Texto por Daniel Tavares
Fotos por Fernando Yokota (veja galeria)
O King Crimson nunca foi um dos nomes mais lembrados na história do rock em geral. Mesmo quando se fala especificamente em Rock Progressivo, nomes como Pink Floyd, Genesis, Yes e Emerson, Lake & Palmer vem primeiro à memória e, historicamente, atingiram maior sucesso comercial. Um dos motivos para tanto pode ser a completa instabilidade na formação. Embora nenhuma das outras bandas citadas tenha tido um line up constante, nenhuma mudou tanto quanto o King Crimson. Com praticamente uma formação diferente a cada disco, apenas o guitarrista Robert Fripp manteve-se como membro constante por toda a trajetória da banda. No entanto, se não é banda de lotar estádios, como aconteceu com David Gilmour (em 2015) e deve acontecer com Roger Waters (em outubro), pela inventividade, beleza e, porque não dizer, estranheza de suas composições, o Crimson ainda é uma banda que tem uma cativa legião de fãs.
Com som mais pesado que as demais bandas, o King também pode ser considerado como um dos precursores do Heavy Metal (“21st Schizoid Man” encaixou com tanta perfeição na voz de Ozzy Osbourne que parece ter sido feita pra ele), embora jamais tenha abraçado o estilo. E integrantes dessa legião, significativa embora não tão numerosa (e plural na faixa etária com jovens adultos de vinte anos e velhos guerreiros de cabelos grisalhos) de “súditos carmesim”, compareceu na noite de sexta-feira para ver uma parte da história do King Crimson sendo reproduzida no Carioca Club, em São Paulo (numa produção da Vega Concerts). A promessa era ver três músicos (dois ainda integrantes e um ex-integrante) do King Crimson no palco desfilando clássicos carmesin em meio a canções próprias.
A banda a se apresentar era o Stick Men, mas, mesmo com a indubitável qualidade musical de sua obra, ninguém seria louco de ignorar que o maior apelo era mesmo a presença dos músicos (e das músicas) do King Crimson na formação. O próprio nome Stick Men ofusca-se em meio aos nomes de cada um de seus integrantes individualmente: Tony Levin e Pat Mastelloto (os dois atualmente tocando no King Crimson oficial) mais Markus Reuter, convidando também o simpático David Cross (que inaugurou a segunda grande fase – não exatamente a segunda formação – do King Crimson na primeira metade da década de 70). E o fato de que mencionamos primeiro o King Crimson, antes de mencionar o próprio Stick Men (numa resenha de um show do Stick Men, não do King Crimson) corrobora a afirmação de que era pelo KC (como também é conhecida a banda inglesa), pela história do KC e pelos músicos do KC que muitos chegaram ali.
Só que ao longo do show (longe de ser um show cover de luxo) aconteceu algo semelhante ao que acontece com alguns spin offs de séries de cinema e TV (admita, você só começou a assistir “Better Call Saul” por causa de “Breaking Bad”) que orbitam as séries originais inicialmente, mas mantém-se por seus próprios méritos. Se alguém tinha a intenção de ver um pouco de King Crimson (que jamais veio ao Brasil) e, quem sabe, comprar uma cerveja ou ir ao banheiro durante as canções originais do grupo cujo nome estava no cartaz, a intenção foi frustrada. E isso é muito bom. Enquanto canções do King Crimson eram muito aplaudidas em seus acordes iniciais, canções do próprio Stick Men imobilizaram os presentes, olhos fixos no palco, num show de técnica em nível tão absurdo que dificilmente será ultrapassado. Estávamos todos “na corte do Stick Men”.
A viagem começou pontualmente às 22h, com os quatro Stick Men no palco. Foi da predileção de Tony Levin pelo instrumento inventado por Emmett Chapman que veio o nome da banda. Como ele e Michael Bernier tocavam o instrumento e Mastelotto usava baquetas (em inglês, sticks) o nome pareceu apropriado. O Chapman Stick é uma espécie de baixo sem corpo, um braço de ponta a ponta, dando ao seu instrumentista uma quantidade bem maior de possibilidades de notas e tons, mas aumentando exponencialmente a dificuldade para tocar. E os primeiros minutos de show já entregam o que seria todo o resto da noite. Improvisações que não necessariamente se misturariam tão bem são conduzidas finalmente por um ou outro dos quatro mestres e acabam seguindo pelo mesmo caminho. A sensação é de poder ter o privilégio de ver algo do naipe do “Umagumma” ao vivo em pleno 2018 (e cá estamos falando de Pink Floyd novamente, mania que não nos deixa). “Hide The Trees” é a primeira canção com forma mais definida trazendo consigo a primeira saudação, um “Oi gente” em português. Mas ainda não há qualquer letra nas músicas. Não há outra palavra senão impressionante. O que se vê é um espetáculo sonoro de deixar os queixos se arrastando no chão do começo ao fim.
Tony Levin declarou que era bom estar de volta a São Paulo (o grupo passou pela cidade em 2011, com um show no Sesc Belenzinho). Depois disse o que todo mundo queria ouvir: “Está é uma noite extra-especial por termos aqui também o David Cross, que tocou no King Crimson, então esperem um monte de King Crimson”. Depois de mais uma do Stick Men, “Cusp”, o violinista que participou de três álbuns do King Crimson entre 1973 e 74 (“Larks’ Tongues in Aspic”, “Starless and Bible Black” e “Red”) também manifestou estar contente por poder voltar ao Brasil. E vem a primeira do KC, “The Talking Drum”. É clichê, mas não me escusarei disso: a bateria começa a falar algo. Logo guitarra, violino e stick começam a desdizer, desmentir, criticar e até concordar, como numa longa jam jazzística em que a música e não as palavras são o meio de comunicação, a forma de fazer planos pro futuro, a valentia ao jogar na cara do outro o que este fez ou deixou de fazer, o pedido de perdão e a conciliação. E assim como no disco, colada a esta canção vem a segunda parte de “Larks’ Tongues in Aspic”. E os gritos que recebem o riff quase heavy metal da canção preenchem todo o Carioca Club. Ao seu fim, aplausos. Aqueles aplausos de fim de show. E em cada rosto um sorriso indecente nos lábios.
Mas não é o fim. Markus lembra que “Crack in the Sky” é a primeira que escreveram juntos para o Stick Men, há cerca de 8 anos. É a primeira com letra, mas cantar não é muito o forte de Levin. Mal dá para entender as palavras que ele mais sussurra declamando (ou declama sussurrando) do que canta. A voz é mais um mero instrumento a serviço da canção. Os 40 minutos anteriores de show corroboram essa afirmação. É uma canção bonita, com agudos pungentes da guitarra de Markus e do violino de David. Depois de “Schattenhaft”, Pat também conversa com o público. “Vocês conhecem a palavra Sartori? Eu achava que sabia, mas na verdade é momento de iluminação. E vocês sabem onde é Tangier?” É a hora da rendição carmesin ao movimento beat, às ideias de Jack Keroac e outros da geração beat, à desconstrução e reconstrução norte-americana pós-guerras. Aqui, a guitarra de Reuter soa como violino, o stick soa como guitarra até que, no meio da música, entra David e põe “ordem” na casa.
“Tentamos no Stick Men escrever algo na estrada e esta é uma nova ideia”, revela Markus sobre “Swimming in Tea”, música que tem sido composta ao longo dos shows e deve aparecer com alguma mudança em cada um. É uma canção cheia de efeitos que chega a lembrar, de inicio, à introdução de “Time”, do insistente Pink Floyd – embora as duas canções em nada se assemelhem. Depois se transforma numa viagem ainda mais lisérgica nuns 10 minutos de música. É isso que eles fazem quando não tem o que fazer? Deus abençoe o seu tédio, então. Nesse dia, o bar do Carioca certamente amargou prejuízo. Ninguém piscava o olho. Ninguém se mexia. Ou melhor, se mexiam apenas para bater longas palmas, como em “Red”, mais um clássico do Crimson, outra que foi muito aplaudida quando foi reconhecida. E também no final.
“Alguns anos atrás, Markus viajou para a Índia. Quando voltou, ele estava iluminado”, revela Pat. “Mas ele ficou doente. E isso foi porque o álbum em que estávamos trabalhando (“Prog Noir”, o mais recente) estava incompleto. Então no meio da noite ele foi pro laptop trabalhar e compôs essa música”, ele continua. E lançou um desafio: “Eu seu que o Brasil é um país cheio de ritmo. Entre a comunidade de bateristas é o que se fala. Mas eu desafio os bateristas brasileiros a tocar a introdução e o final dessa música”. “332, 3322, 33222, 223, 2233, 22333”, ele recita. Ao fim da intricada canção progressiva, Tony fala que viu algumas pessoas tentando acompanhar na plateia e revela: “Pra gente também não é fácil. Se a gente comete um erro a gente continua como se fosse tudo bem e faz parecer fácil mas não é”. A faixa que dá nome a este último álbum é a seguinte. Nela, Levin canta novamente, mas sua voz se perde em meio aos instrumentos. A ambientação criada pela música é mesmo meio Noir. É como se houvesse um narrador ao fundo de uma cena escura num filme com poucos diálogos.
Mesmo abusando da técnica, não há nada de frieza nem distância na banda. Há sim, certa timidez claramente aparente, mas isso é coisa de nerds incorrigíveis que devem ser os quatro desde antes deste termo ser cunhado. A próxima canção foi composta no ano em que Markus nasceu, brinca David. É uma das releituras de “Starless”, um dos momentos mais esperados da noite. Um momento lindo. Em mais um breve intervalo para que o público recuperasse o fôlego, Pat avisa que a próxima seria uma das mais novas do King Crimson. “Essa é de 2002. É pesada, porque o King Crimson sempre foi pesado”. E ainda revela: “Certa vez o Robert Fripp disse que queria mudar o nome da música para “Larks’ Tongues In Aspic Part V”. Ele falava de “Level V”, ou da quinta suposta continuação da experimentação instrumental que dá nome ao álbum de 1973.
Pareceram 15 minutos desde que a figura esquálida de Tony Levin e os quase gêmeos Markus Reuter e Pat Mastelotto subiram ao palco junto com David Cross e seu inseparável chapéu, mas quase duas horas já tinham se passado. Havia ainda espaço e desejo por muito mais (e aí tinha sorte o público de Niterói na noite seguinte – a banda faria dois shows diferentes seguidos no Teatro Municipal da cidade). Mas era hora de acabar. O próprio Levin (que também aventura-se pelo mundo das imagens) tirou foto do público gritando “Mais um”, “Mais um”. O desejo é prontamente atendido com a improvisação completamente aberta que recebe apropriadamente o nome “Open”. Nela, David e Markus revezam-se entre seus instrumentos e o teclado enquanto Pat e Levin fazem o que lhes dá na cabeça. É uma música que vai se construindo. Partes completamente desconexas tornam se uma sólida parede. É uma aula de construção musical que encerra uma noite mágica. E se haviam ali fãs do King Crimson interessados no trabalho do Stick Men, ao final desta noite, todos voltaram para casa tão fãs de uma quanto da outra banda – e com um sorriso indecente nos lábios.
01. Improv.
02. Hide the Trees
03. Cusp
04. The Talking Drum (King Crimson)
05. Larks’ Tongues in Aspic, Part Two (King Crimson)
06. Crack in the Sky
07. Schattenhaft
08. Sartori in Tangier (King Crimson)
09. Swimming in Tea
10. Red (King Crimson)
11. Mantra
12. Prog Noir
13. Starless (King Crimson)
14. Level Five (King Crimson)
15. Open
– Daniel Tavares (Facebook) é jornalista e mora em Fortaleza. Colabora com o Scream & Yell desde 2014.
Belo espetaculo e Belo texto!