Texto por Renan Guerra
Mineira, leonina, filha de Ogum e Iansã e uma das maiores cantoras da música brasileira: Clara Nunes é estrela da maior grandeza e, por isso mesmo, é estranho que ainda haja pouco material a revisitar sua história e seu legado. O documentário “Clara Estrela” (2017) chega agora ao público e apresenta um olhar bastante íntimo sobre a carreira de sucesso da cantora.
“Clara Estrela”, de Susanna Lira e Rodrigo Alzuguir, é um projeto que vem sendo construído há 20 anos, desde 1998, quando Rodrigo e sua irmã Renata Alzuguir começaram a pesquisa que seria a base do filme. Com o apoio do canal Curta!, o filme foi finalizado em 2017 e exibido em alguns festivais nacionais, estreando oficialmente agora em fevereiro deste ano na TV.
Com pouco mais de uma hora de duração, o documentário é inteiramente baseado em arquivos e narrado pela própria Clara, através de antigas entrevistas – já as entrevistas de mídia impressa são lidas de forma delicada por Dira Paes – focando inteiramente na carreira da artista, apresentando sua história desde a saída de Minas até sua empreitada musical no Rio, bem como suas viagens à África e sua relação com a umbanda.
Em determinada cena, Clara conversa com Marília Gabriela, que pergunta o que ela acha sobre a exposição da vida íntima dos artistas e ela deixa claro que acredita na necessidade de certos limites e na preservação de sua intimidade e de sua casa, por exemplo. Essa entrevista é determinante para o tom do filme, que só abre caminhos por espaços expostos pela própria Clara em vida, sem em nenhum momento entrar em detalhes sórdidos ou fofocas.
Clara, como grande artista popular, estava nas páginas de diferentes revistas e sua vida sempre foi exposta de maneiras nem sempre respeitosas. No filme, os momentos de maior intimidade se referem apenas a seu casamento com Paulo César Pinheiro e seus dois abortos naturais, que ela conta também à Gabi. Sua morte ainda jovem (ela faleceu em 1983 aos 40 anos) foi alvo de centenas de teorias um tanto esdrúxulas, fatores que o filme faz bem em deixar de lado – talvez esse tema mereça ainda um olhar futuro cuidadoso, para vermos o quanto há de maldade e preconceito em diferentes olhares que as pessoas lançaram sobre a vida e a história de Clara.
Forte representante da cultura afro-brasileira e do sincretismo religioso, Clara ainda é uma figura ousada num país em que ainda são comuns notícias de terreiros e casas de santo sendo atacadas e destruídas pela intolerância religiosa. Além disso, em “Clara Estrela” fica aparente a força feminina da artista, que falava de forma incisiva sobre a importância da independência financeira das mulheres e como ela apresentava um discurso firme de apoio às outras cantoras da MPB.
Clara foi a primeira artista feminina a vender mais de 100 mil cópias, acabando com o mito de que mulheres não vendiam discos e abrindo as portas para que as gravadoras investissem de forma mais certeira em artistas femininas – primeiro com o álbum “Clara Nunes ” , de 1971, que ultrapassou a marca de 150 mil cópias vendidas, depois com “Claridade” (1975), “Canto das Três Raças” (1976) e “Guerreira” (1978), três discos que bateram a marca de 1 milhão de cópias vendidas (seu recorde seria “Brasil Mestiço”, de 1980, que alcançaria a marca de 2 milhões)
Nesse sentido, o roteiro de “Clara Estrela” consegue ser bastante didático, apresentando toda a sua trajetória, mostrando o caminho que ela trilhou, a sua influência, mas sem em nenhum momento soar piegas ou se utilizar dos dramas da cantora como muleta. A pesquisa do filme chama atenção, pelo seu cuidado e por sua seleção de momentos bastante icônicos com outros mais desconhecidos. O documentário se inicia com uma apresentação de Clara na TV sueca, acompanhada da Orquestra Sinfônica de Estocolmo, assim como ao longo do filme vemos clipes clássicos dela no Fantástico, sua apresentação ao lado de Sivuca cantando “Feira de Mangaio” e belos takes dela desfilando na Sapucaí pela Portela, sua escola de samba do coração.
“Clara Estrela” é um filme de louvação a guerreira Clara e, nesse sentido, funciona de forma bastante eficaz para resgatar a história, a carreira e o legado de uma artista que morreu jovem, mas que deixou sua marca de forma indelével na nossa cultura. Que esse filme seja o ponta-pé inicial para um resgate de Clara e para que novos olhares sejam lançados sobre esse ícone tão fundamental.
– Renan Guerra é jornalista e colabora com o sites A Escotilha. Escreve para o Scream & Yell desde 2014.
Onde podemos assistir?
David, ele está disponível no Canal Curta, que foi um dos patrocinadores da produção, mas os produtores estão negociando a exibição em cinema. Mais informações atualizadas no Facebook oficial do filme: https://www.facebook.com/claraestrelaofilme/