Texto por Renan Guerra
Pressa é uma das palavras que realmente não se comunica com o trabalho de Vitor Ramil, muito menos com a relação que devemos ter com suas canções, por isso mesmo esse texto ficou marinando por um bom tempo, pois a cada nova audição do recém-lançado “Campos Neutrais” outras coisas iam surgindo e criando espaço. O trabalho de Ramil tem essa pseudo simplicidade, ele parece ao primeiro momento bastante direto, mas vamos aos poucos descobrindo as diferentes camadas e possibilidades que surgem em suas propostas.
Quase cinco anos depois de “Foi No Mês Que Vem”, álbum duplo que revisitava sua carreira, o pelotense Vitor Ramil retorna as canções inéditas em “Campos Neutrais”, trabalho que mais uma vez mostra a sua força como compositor, mas, além disso, mostra também como o músico é cada vez mais cuidadoso e delicado. Em mais de uma hora de disco, é possível notar a meticulosa produção, que cria um universo bastante coeso, mas em nenhum momento repetitivo, que passeia por diferentes sonoridades, nos levando a essa viagem que está presente em suas canções.
O trabalho de Vitor é sempre calcado numa territorialidade, é como se cada canção se estabelecesse geograficamente, criando essa estética do frio que ele há tempos versa sobre. Gravado em Porto Alegre, “Campos Neutrais”, em sua premissa, canta sobre uma histórica faixa de terra desabitada no atual Rio Grande do Sul que não pertenceria nem a Espanha nem a Portugal, esse território de ninguém que seriam os campos neutrais. Esse simbolismo é o ponto de partida para que Ramil cante as diferentes cidades por onde passou, aí vemos Londres, Montevidéu, Porto Alegre e, claro, a sua Pelotas, transformada na já mítica Satolep.
Durante o processo de produção do disco, conversei com Vitor Ramil e ele afirmava: “estou entre as culturas platinas e a grande cultura brasileira, com tudo isso convergindo na minha cabeça, pois a gente está numa área geograficamente privilegiada, culturalmente de transição entre esses mundos, então posso dizer que gravei um disco aqui, no centro de uma outra história e as pessoas vieram gravar comigo. Veio o Chico César, veio o Zeca Baleiro, e eu gravei uma música do Dylan, um poema de um português, outra de um galego, criei uma coisa diversificada com gente de várias culturas, mas feito aqui (no Sul)”. Essas diferentes inserções de outras personas dão essa multiplicidade ao disco, tanto que mesmo as díspares presenças de Chico ou Zeca não soam desconexas, parecem integradas de forma certeira ao universo de Ramil.
A faixa “Stradivarius”, por exemplo, é um poema da também pelotense Angélica Freitas, e que soa como uma canção típica de Vitor, se aqui não estamos em nenhuma cidade, estamos ainda geograficamente localizados: num avião a despencar, em meio a uma canção que cita de Béla Bartók a Klaus Kinski e ainda soa saborosamente pop. “Se Eu Fosse Alguém”, entoada a capela por Gutcha Ramil, se ouvida sozinha também pareceria desconexa do universo do disco, mas no todo soa como um momento de dolorosa beleza que abre-alas para a forte “Palavra Desordem”, com seus versos a cravar “Inaugurem formas de ser / Sejam um começo sem fim”.
As escolhas por diferentes línguas também funcionam de forma harmônica: “Angel Station” é forte e bela, podendo ser entoada por qualquer grupo de rock; “Lado Montaña, Lado Mar” é delicada e envolvente; “Duerme, Montevideu” mescla espanhol e português de forma melancólica, a dizer “Viver é maior que a realidade”; “Tierra”, linda no original de Xoel López, ganha versão equivalentemente bela em português (fica a esperança que os dois gravem uma versão juntos).
De todo modo, o momento preferido de “Campos Neutrais” é “Labirinto”, faixa de amor dolorosa e de rara beleza, canção quase arquetípica do universo de Ramil, mas ainda assim tão distinta e com ares novos, que nos mostram a sua intensidade como compositor. Tenho ganas de transcrever aqui a letra na íntegra, mas deixo apenas os versos “O amor são loucos descaminhos / Sem árvores, sem pouso, sem um ninho”.
Enfim, para encerrar esse texto retornamos ao início: o trabalho de Vitor Ramil nos pede tempo, nos pede atenção, imersão. E “Campos Neutrais” é mais um capítulo de irretocável beleza dentro da obra do gaúcho, por isso vale a sua audição de forma carinhosa, a atentar-se a cada nota, a cada verso, a cada detalhe, pois é um disco construído nas minúcias, alcançando a grandiosidade presente na simplicidade.
– Renan Guerra é jornalista e colabora com o sites A Escotilha. Escreve para o Scream & Yell desde 2014.