Entrevista por Gil Luiz Mendes
Ainda estava no início do show em que Tibério Azul mostrava, pela primeira vez no Recife, as músicas do seu último trabalho chamado “Líquido”, lançado em março, quando o artista resolveu abrir seu coração de cima do palco do Teatro Santa Isabel e dizer que estava morrendo de saudade de tocar em casa. Morando há mais de dois anos no Rio de Janeiro, Azul decidiu demonstrar esse sentimento de falta no dia 13 desse mês com uma versão do “Frevo nº 3”, de Antônio Maria.
“Sou do Recife com orgulho e com saudade / Sou do Recife com vontade de chorar / E o rio passa, levando barcaça pro alto do mar/ E em mim não passa essa vontade de voltar / Recife mandou me chamar”. Os versos não são aleatórios. As águas do Capibaribe, rio que corta a capital pernambucana, estão presentes nas canções do álbum lançado pelo compositor no início deste ano, projeto que é acompanhado (e ampliado) pelo livro “Líquido Ou o Homem Que Nasceu Amanhã”.
Se na apresentação no Teatro Santa Isabel, Tibério se mostrava alegre, dançante e empolgado por ver todas as cadeiras do lugar ocupadas, em sua maioria por rostos conhecidos dele e da cena artística recifense, um dia antes seu semblante era de cansaço. Pudera, após seis horas seguidas de ensaio com uma banda recém-formada de 10 integrantes, ele concedia essa entrevista em um bar de mesas na rua, no final de uma quarta-feira que parecia teimar em não ter fim.
Durante a conversa o cantor, compositor e poeta explicou como foi o processo para elaboração de “Líquido” (que sucede sua elogiada estreia, “Bandarra”, de 2011), ao mesmo tempo em que vislumbra como será o próximo disco, que já tem nome e músicas prontas. “Líquido” traz parcerias com Castor Luiz, Yuri Queiroga, Vitor Araújo e Zé Manoel, sendo que os dois últimos ainda participam do álbum ao lado de Pedro Luis e Clarice Falcão. “Líquido” é “inspirado nas manhãs nubladas de Recife” e, no bate papo, Tibério aproveitou também para falar do seu lado escritor que está mostrando agora, ao lançar seu primeiro livro paralelamente ao segundo disco da carreira solo. Confira.
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“Líquido” é um disco que se destaca pelos arranjos e o grande números de instrumentos. Como foi gravar isso?
Foi foda. É comum na música popular os artistas comporem músicas ao longo do tempo e depois agregarem elas em um disco, e pra quem é independente tem sempre a questão dos custos que, por muitas vezes, acabam deixando as coisas mais enxutas. Mas acho que eu sou um artista à moda antiga. Meus modelos de criação e produção são muito arcaicos. Não consigo me adaptar ao sistema. Quando eu estava terminando o “Bandarra” (2011), o conceito do “Líquido” começou a surgir. Quando comecei a escrevê-lo, já percebi que essa estrutura de arranjos era essencial. Quando fomos começar a gravar, o Yuri Queiroga, que é o produtor do disco, avisou que ia ficar muito caro todo o processo de gravação e sugeriu algo mais simples. Tive que explicar que as músicas tinham nascido daquela forma e seria difícil mudar. Não era uma questão de opção.
E como você fez para tornar a gravação viável?
Não foi fácil, tive que contar muito com os parceiros. Os músicos foram compreensíveis, pois sabiam que o orçamento era bem baixo. No final eu consegui aprovar um projeto através da Funculutra, do governo de Pernambuco, para finalizar o disco com a masterização e mixagem, pois já tinha tirado do bolso todo o custo de gravação.
O disco estava todo na tua cabeça quando você entrou no estúdio?
Não. Eu sou muito conectado à carga poética do trabalho. Essa é a parte que eu domino e tenho zelo. Quando passa para a parte de arranjos, eu tenho ideias e escolhas, mas nesse momento conto muito com os parceiros. Em todos os meus discos há uma participação muito ativa das pessoas que se envolveram com ele. Quando vou atrás das pessoas para fazerem parte do trabalho, seja na arte da capa, na produção ou mesmo tocando, gosto de pensar que estou agregando arte e não contratando alguém.
Como você está fazendo para colocar toda essa grandiosidade de sopros e cordas do disco para os shows?
Dá pra enxugar. Tenho tocado com sete pessoas no palco (no show do Recife foram 10). É quase a mesma estrutura que eu tinha nos shows do “Bandarra” adicionando agora mais três instrumentos de sopro e tem funcionado muito bem. A generosidade dos músicos nesse processo é fundamental.
No seu disco e também no livro há referências sobre o Recife e atualmente você mora no Rio de Janeiro. Isso interferiu em quê no teu trabalho?
O livro (“Líquido ou o Homem Que Nasceu Amanhã”) foi escrito no Rio e o disco (“Líquido”) em Recife. Entre o “Bandarra” e o “Líquido” houve um hiato de seis anos que foi um período sabático que tirei. Foi intencional, eu queria ser pai e há dois anos e meio estou morando no Rio de Janeiro. Quando cheguei lá o disco já estava quase todo composto.
Como foi a participação de Pedro Luís e Clarice Falcão em “Líquido”?
A música com Pedro (“Nem a Pedra é Dura”) teria outra concepção, Durante a gravação, Yuri propôs uma mudança nessa faixa. Passei a declamar uma parte da canção com frases de Mia Couto, que é a minha maior influência nesse disco, e pensamos que seria bom ter uma outra voz cantando ou recitando. Chegamos a pensar em trazer o próprio Mia Couto para recitar, mas decidimos chamar o Pedro Luís por ser um cara de que sou fã e que está sempre em Pernambuco. Liguei e ele topou na hora. Clarice é uma amiga que me recepcionou no Rio quando eu ainda estava fazendo a turnê do “Bandarra” e isso teve um peso sentimental muito grande para mim. Depois disso eu sempre quis uma parceria com ela em um disco meu. A participação dela (na faixa “Chover”) já estava decidida antes mesmo de fazer o disco.
“Líquido” é uma continuação de “Bandarra”?
Quando Terminei o “Bandarra”, pensei na concepção de “Líquido”. Faço um disco como quem escreve um livro, é um hábito. Em um livro você define mais ou menos uma trama e depois que ela está mais ou menos pronta você senta para escrever. Componho um disco da mesma maneira. Começo a pensar no que o disco vai falar, geralmente tenho um título provisório, um personagem que vai guiar a obra, e é em cima disso que eu começo a compor.
Essa relação de obras que se completam vem desde a época que você toca no Mula Manca?
Sim, já fazíamos isso. O “Circo da Solidão” narrava a história de um espetáculo onde os ser humanos e seus sentimentos eram as grandes atrações. O “Amor e Pastel” narra um relacionamento desde do seu nascimento até a sua decrepitude. Meu primeiro disco solo fala sobre um homem se libertando e o “Líquido” é um homem abraçando. No “Bandarra” descobri que o elemento terra guiava o disco inteiro, como se eu estivesse dando um signo para ele. O “Líquido” vem com a concepção da água. E no próximo quero falar sobre a morte e o elemento dele vai ser o fogo. Acho que eu vou acabar fazendo uma quadrilogia, o seguinte vai acabar sendo ar, e quando terminar tudo isso vou criar outro conceito e outra temática.
O que te faz terminar um disco e já pensar em outro?
Se precisasse gravar meu próximo disco hoje, eu já poderia. Tenho 70% das músicas compostas. Quando você começa a gravar um disco, as músicas já foram compostas há algum tempo. O processo de criação acabou. Termina que você passa a olhar mais para o outro lado. Eu demorei muito para gravar esse disco e já estou há um ano compondo para o próximo.
Os personagens das tuas músicas são autobiográficos ou você tenta contar as histórias em terceira pessoa?
Eu me uso como referência, mas não é biográfico. Posso ter uma referência minha, mas não uma lógica biográfica naquilo. O que está ali é algo em que acredito. Minha música é muito contemplativa, não existe uma visão falida do mundo. Já compus muita música triste, mas eu não encaixo no meu trabalho, geralmente passo adiante. Eu sou assim também, então é algo que casa entre mim e a minha música. Se eu ficar só no biográfico fico pobre e redundante.
Você lançou “Líquido” como um disco e também como um livro. Como são essas duas plataformas da mesma obra?
A literatura é anterior á música na minha vida. Comecei a tocar violão com 15 anos e me lembro muito bem de quando fiz a minha primeira música, mas se você me perguntar quando foi que comecei a ter um vínculo literário eu não vou saber responder. Eu corria atrás dos meus irmãos com livros para eles lerem para mim. Eu ansiava saber ler. Vim de uma família humilde e, na minha casa, arte sempre foi algo muito distante. O que tinha na minha casa de literatura quando eu era adolescente era Paulo Coelho e eu li tudo. Sempre me achei escritor e poeta. Me acho mais poeta do que músico. Tenho uns seis livros escritos no meu computador, mas eles nunca me agradaram ao ponto de querer publicá-los. Depois que terminei de gravar o “Líquido” eu tive uma sensação de que ele não tinha acabado. Achava que ainda tinha mais para dizer e decidi escrever um release poético sobre o disco, depois pensei em escrever textos inéditos e colocar no encarte, mas ainda queria mais. Comecei a escrever muito e percebi que ali havia uma narrativa própria. Passei seis meses escrevendo compulsivamente. O Rio Capibaribe e Recife apareceram muito nesse momento de construção do livro. Em uma das minhas visitas ao Recife fiz uma viagem por todo leito do rio desde a sua nascente e foi muito importante para a poética que eu queria colocar no livro. Gostei muito do resultado e mandei para algumas pessoas lerem e elas piraram. Aconteceu como eu queria, que era justamente lançar o livro junto com o disco.
Assim como com os discos, já está pensando no próximo livro?
Literatura é o meu tesão. Não tenho dúvida que virão outros. Só não sei se vai ser nesse mesmo formato com um disco saindo junto. Mas o próximo disco vai ser sobre a morte e eu já estou borbulhando para escrever coisas sobre a morte, mas quando eu falo morte é no sentido do final das coisas. Esse momento político que estamos vivendo é uma grande morte.
– Gil Luiz Mendes (https://www.facebook.com/gil.luizmendes), jornalista, 32 anos, viveu boa parte da vida no Recife e hoje mistura a sua loucura com a de São Paulo. Tem passagens pelas rádios Jornal do Commercio, CBN , Central3 e tem textos publicados no IG e na Carta Capital. É skatista e músico quando dá tempo.
Lembro de ter visto um show do Mula Manca e a fabulosa figura em um festival que também tinha Cordel do Fogo Encantado e Teatro Mágico. Achei as músicas muito boas, uma pena não terem dado certo e terem prosseguido o trabalho.