Texto por Leonardo Vinhas
Fotos por Bruno Carachesti e Liliane Moreira
Um festival de música instrumental lotando um espaço que é uma verdadeira joia arquitetônica do Norte do Brasil por duas noites seguidas. Parece delirante, mas a afirmação não é fruto de uma insolação ou da ingestão de ervas amazônicas com poderes psicotrópicos. É um resumo bastante justo do que foi a segunda edição do Festival Sonido, que aconteceu nos dias 20 e 21 de abril na capital paraense. Embora seja a segunda edição, os organizadores do evento são veteranos: Marcelo Damaso e Renee Chalu, da Se Rasgum Produções, organizam há 11 anos o festival que leva o nome de sua produtora. A experiência de ambos ajuda a nortear uma curadoria que equilibra metade de atrações locais e a metade de outros Estados do país. São duas noites de entrada gratuita, com quatro shows cada, tudo no Mercado de Carnes Francisco Bolonha, a porção mais carnívora do famoso mercado Ver-o-Peso.
O prédio é um espetáculo: mesmo que a conservação não seja das melhores, é um dos mais belos exemplos do estilo neoclássico, com quatro pavilhões metálicos que abrigam os boxes comerciais, que durante o festival vendiam de vatapá a cachorro-quente, e cerveja long neck a inacreditáveis R$ 3. Na fachada, um videomapping concebido por Roberta Carvalho com imagens da Belém antiga, seus azulejos e outros detalhes ajudava a compor o visual único, enquanto os spots de luz em funcionamento na parte interna, que é coberta apenas parcialmente, davam um tom de delírio da selva à coisa toda, mesmo quase não havendo vegetação por perto.
Na primeira noite, um temporal desabou pouco antes do início festival, se transformando logo depois em uma chuva fina e insistente. Isso gerou um pequeno atraso (14 minutos). Formou-se uma curiosa sequencia de guarda-chuvas coloridas mais próximos ao palco, embora muitos dos presentes não se incomodassem com o tempo (“Aqui é Belém, a gente tá mais que acostumado”, me disse um motorista de Uber que se deu folga para estar ali). O Jardim Percussivo abriu o festival. Trata-se de um projeto do músico e professor Marcio Jardim, bastante conhecido na cidade. Com alguns de seus alunos, montou uma numerosa agremiação que faz jus ao nome. O resultado, ao contrário do que esse background pode sugerir, é bastante cerebral – acadêmico mesmo. Cada batida parece ter sido pensada, o volume cuidadosamente dimensionado. Em alguns minutos, é épico. Em outros, soa como uma espécie de cruzamento de rock progressivo (há guitarra e baixo) com jazz fusion. No fim, e bom, mas não emociona.
O tom já mudaria radicalmente com o segundo show, um encontro entre os também locais Rafael Azevedo e Nêgo Jó. Ambos são músicos com trabalhos fortemente apoiado no groove, principalmente no funk, e a junção de ambos no mesmo palco foi a convite do festival – faz parte da premissa do Sonido promover encontros musicais. E a proposta deu certo: com o fim da chuva e uma apresentação mais orgânica, comprovou-se o mito de que os belenenses saem de casa para dançar, e nunca dançar pouco. A coisa começou com um pezinho nos anos 80 – a quem duvidasse disso, bastaria ver o visual de Nêgo Jó, que ainda tocava keytar, aquele teclado apoiado na braçadeira. Porém, a raiz musical era o funk 70 classicão mesmo. Azevedo (baixo) veio acompanhado de sua banda e foi o seu repertório que ocupou a primeira metade do show. Sabe aquelas trilhas sonoras de filme de ação, aquelas que você nunca sabe quem está tocando, mas não consegue deixar de esboçar uma dançadinha? Então, ia por aí. Mas quando Nego Jó deixou as teclas e assumiu o trombone, a coisa mudou de figura. As harmonias ficaram mais velozes e pesadas, e a presença de palco do Nêgo, que agora puxava a banda (todos com cara de que estavam se divertindo horrores), fez o Mercado de Carnes virar um bailão sem cheiro de bolor. Teve até segurança deixando seu posto para ver o show mais de perto, com um sorrisão no rosto. Enquanto isso, um sujeito que parecia uma versão reduzida do Brandon Lee em “O Corvo” entrou célere em um dos boxes vazios do mercado e dançou animada e ininterruptamente para si próprio.
Por falar em ficar à vontade, o clima era de chamego livre, com casais de todos os tipos, o que chegava a impressionar. Você pode argumentar que isso não deveria ser motivo de atenção, e está correto. Porém, sabemos que o mundo não obedece à lógica do respeito e da civilidade, e que não é em todo lugar que “não-héteros” podem se beijar sem medo de alguma represália. Ali, isso não era problema algum – e lembre-se que é uma parte vital da cidade. Mais um ponto para Belém.
Com seus uniformes pretos que não ornavam com o clima abafado, o quarteto Aeromoças e Tenistas Russas, de São Carlos (SP), se dividiu entre samples, controladoras, bateria, percussão eletrônica, guitarra e baixo para trazer um som inspirado em diferentes fontes: rock oitentista, trance, dubstep e ambient se misturavam e ganhavam uma releitura mais tecnológica. Era a primeira apresentação de seu novo show, e a fartura de trilhas e programações contrastou com a organicidade da apresentação anterior, mas isso não representou problemas. O começo sugeria que estaríamos diante do show da noite: público dançando e batendo palmas, berrando após trechos empolgantes, essas coisas. Porém, se perderam na introdução de um tema, que repetiram por nada menos que três vezes, Faltou aos são-carlenses um pouco mais de tranquilidade para lidar com essa situação – acabaram perdendo a conexão que tinham estabelecido com o público e tiveram que suar para recuperá-la. Conseguiram: o saldo final foi positivo. Poderia ter sido excepcional.
O brasiliense Esdras Nogueira fechou a noite. O ex-Móveis Coloniais de Acaju alterna suas canções com temas de gente como Hamilton de Hollanda, Egberto Gismonti e Hermeto Paschoal, entre outros – a nata da música instrumental brasileira. Nesse repertório, ele e seus músicos encontram caminhos inesperados, trazendo peso sem abandonar as nuances. O saxofone, instrumento de Nogueira é obviamente a estrela, mas ele dialoga bastante com a forte base percussiva (o baterista em especial é um monstro). Desse relacionamento nasce a dinâmica do show, que mesmo não sendo dançante do começo ao fim, mantém a hipnose. Não estivesse o termo tão barateado pelo mau uso, poderíamos dizer que foi psicodélico, já que a viagem instrumental empurrava a cabeça para longe, enquanto o corpo dava um jeito de se mexer.
A segunda noite começou atraso de quase uma hora – problemas na passagem de som começaram cedo e se repetiram para todos os artistas. Eram 19:55 quando o quinteto Albery Project começou seu show, novamente sob uma chuva fina que mais aumentava a sensação de calor que refrescava. Casa mais cheia que no dia anterior, e lá pelas 21 horas a entrada já estava fechada, com a entrada de mais pessoas liberada apenas após a saída de outras tantas. Albery Albuquerque é um personagem sem igual. Sua carreira remonta à década de 70, quando integrava a banda O Sol do Meio-Dia. Porem, ele ficou 18 anos sem se apresentar (“Tinha dois empregos, eu precisava trabalhar e não podia mais ter uma relação com o violão como eu acho que teria que ser”, diria mais tarde) Sua pesquisa musical busca mapear sons da natureza e conceitos da física (isso mesmo!) para poder “identificar as linguagens” e ser capaz de compor e improvisar a partir delas. Não, ele não faz transcrições musicais de cantos de pássaros (“Isso seria chato, sem sentido”), A coisa é, definitivamente, outra, e infelizmente suas gravações de estúdio, disponíveis online, não fazem jus ao que acontece ao vivo.
“Assim como eu posso mapear, estudar e aprender, a linguagem da bossa nova e compor uma canção nesse estilo sem plagiar Tom Jobim, posso mapear a linguagem do tucano e compor ‘em tucano’”, explica. Engana-se quem pensa que isso resulta em uma sonoridade complacente ou “new age”: O som é cheio, encorpado, e é surpreendentemente como ele consegue cativar o público e, como se diz em dramaturgia, fazer todos respirarem na mesma frequência. Em alguns momentos, é possível pensar num cruzamento de Frank Zappa (sem escatologia, claro) com Hermeto Pascoal. Uma grande figura – e um show brilhante.
A boa onda contagiou o público, que acolheu bem o quarteto Astronauta Marinho, de Fortaleza. Sua receita de pós-rock e minimalismo segue a fórmula “começo introspectivo seguido de aceleração/explosão”. Fosse num teatro ou em um show só deles, talvez a percepção fosse outra, mas o Albery Project tinha colocado o sarrafo numa altura bastante elevada, e isso favoreceu a impressão de que o Astronauta flutuasse naquela órbita de “mais do mesmo”.
Lucas Estrela & Uaná System, segundo encontro promovido pelo festival, subiu ao palco com status de grande atração da noite, e fez (muito) por merecê-lo. Uaná System é uma dupla que conta com Waldo Squash (Gang do Eletro) e Luan Rodrigues montando fusões audiovisuais da música paraense e da estética eletrônica. Lucas é um prodígio local. Com uma aparência entre Pepeu Gomes e David Bowie, com direito a guitarra cravejada de pequenas lâmpadas, ele tem toda a persona do pop star, para o bem e para o mal. Apesar de jovem, tem domínio absoluto de público – a ponto de apresentar a banda ainda na segunda canção sem deixar a energia cair.
O repertório combinou canções de seu primeiro álbum, “Sal ou Moscou”, e trouxe algumas de seu sucessor, ainda sem título, a ser lançado em agosto pela Natura Musical, acrescido das composições do Uaná. Lucas tira timbres únicos de sua guitarra, e dobra muitos de seus riffs com o saxofone. A dupla, por sua vez, pesava nos graves em suas batidas, e conseguiu puxar um espontâneo coro de “Fora, Temer” só com seus beats (que viria a ser repetido mesmo após o fim do show). Carimbó, guitarrada, cumbia, rock e lambada passavam por esse filtro “tecnoamazônico” e se transformavam em outra coisa que ainda não tem nome, mas já dá para saber que é única. Showzaço.
A responsabilidade de passar a régua no Sonido coube ao paulistano Quartabê. Quem os viu ao vivo sabe que é difícil não curtir suas releituras de Moacir Santos: não há nenhum momento musical previsível, e as folias de Maria, Mariá, Ana Karina, Joana e Chicão são algo a se observar por si só. Todos vestidos em uniformes escolares “trocados” (as moças de shorts e o mancebo de saia), passeiam pelo palco como se fossem crianças brincando no intervalo entre as aulas (as caretas da baterista Mariá Portugal, em especial, são impagáveis). Porém, a Quartabê é uma dona de uma sonoridade com muitos silêncios, e o clima deixado pelo show anterior era de explosão. Cerca de um quarto dos presentes acabou indo embora, mas quem ficou topou brincar junto, e a noite terminou de forma divertida.
Presenciar um festival como o Sonido permite fazer algumas deduções, e até ter algumas conclusões. A primeira delas se refere à música instrumental brasileira: nunca ela esteve tão prestigiada pelo público jovem (gente com mais de 35 anos era minoria no Francisco Bolonha). Isso também se nota em festivais como Ilhabela Instrumental, Savassi Festival e Instrumenta Brasília, alguns dos eventos dedicados a essa estética, que ainda se faz presente de forma constante em outros festivais “não-exclusivos”, como Rec-Beat, Dosol, Festival Brasileiro de Música de Rua e Bananada. A diversidade de eventos e bandas também é sintoma desse interesse – o que não deixa de ser curioso, já que existe uma falácia na indústria musical de que “ninguém quer saber de música sem letra”. A lotação esgotada de ambas as noites do Sonido mostra que não é bem assim.
Por fim, já faz tempo que se fala do Pará como um dos maiores celeiros musicais desse país. O sucesso de alguns nomes mais populares, de Calypso a Gaby Amarantos, pode fazer torcer o nariz dos esnobes, mas a postura de público e artistas nesse evento – e da Lambateria, uma concorridíssima festa semanal conduzida por Félix Robatto, também presenciada pelo repórter – foi um sinal de que o paraense pouco se importa com rótulos ou esnobismo. Eles querem apenas boa música, algo que a região está mais que disposta a dar – e receber.
Top 3 Scream & Yell – 2º Sonido
Lucas Estrela
Albery Project
Esdras Nogueira
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.
Belo texto. E mais uma ótima iniciativa. Pena que não pude ir. Mas o local é massa demais. E em Belém, tudo se dança sempre.