por Renan Guerra
Antonio Cicero é compositor, poeta, filósofo, crítico, mas ainda é conhecido por muitos como o “irmão da Marina Lima”. Arthur Nogueira é um cantor e compositor vindo direto do Pará. Com 28 anos, Arthur já transita entre os de sua geração e as anteriores buscando sempre o presente, temporalidade que dá nome a sua homenagem aos 70 anos de Antonio, celebrados em 2015. Lançado pela gravadora Joia Moderna, sob a batuta do multifacetado DJ Zé Pedro, “Presente (Antonio Cicero 70)” é um passeio pelas parcerias de Antonio com gente como Adriana Calcanhotto, Frejat, Waly Salomão, Lulu Santos e o próprio Arthur, tudo isso sobre a produção eletrônica e obtusa de Arthur Kunz.
Amigo íntimo de Cicero, Nogueira dá luz de forma clara e direta à perspectiva homoerótica da poesia de Antonio Cicero, muitas vezes ignorada pelo público. Sobre esse olhar, Antonio falou o seguinte ao Mix Brasil, em 2002: “O que ocorre é simplesmente que não sou cantor nem músico, de modo que as minhas letras são musicadas e cantadas geralmente por minha irmã, Marina. Assim, as letras que eu fizesse para um rapaz, que, se tivessem sido publicadas num livro, teriam sido lidas como homoeróticas, podiam, na voz da Marina, ser ouvidas como heteroeróticas. Por outro lado, se eu fizesse uma letra para um amor homoerótico da Marina, ela podia ser ouvida como um poema heteroerótico meu. Mas nada disso foi ruim, pois as leituras homoeróticas também eram possíveis e, dada a postura da Marina, até estimuladas.”
No caso de “Presente”, Arthur deixou de lado as canções de Cicero ao lado de Marina, uma escolha proposital da gravadora, visto que há alguns anos a Joia Moderna lançou “Literalmente Loucas – As Canções de Marina Lima”, que abarcava muitas dessas parcerias. No disco atual, a figura feminina que mais transparece é Adriana Calcanhotto, que já havia gravado as canções “Asas”, “Bagatelas”, “Inverno”, “Água Perrier” e “Noite”, faixas que fizeram parte da formação musical de Arthur e que aqui retornam em versões bem distintas das de Calcanhotto. “Inverno”, por exemplo, ganha um timbre quase abafado, que aumenta a melancolia de quem sente um “inverno glacial no Leblon”.
“Onda” é um dos primeiros poemas de Cicero que foi musicado por Nogueira e é nessa faixa que o caráter homoerótico de sua obra ganha contornos delicados e sedutores, em versos que rimam “picolé de manga” com “beijo de língua”, ecoando o espectro sexual do Rio, aqui apropriado pelos gays (vale lembrar que o Rio é o destino preferido dos gays do mundo). Nessa mesma linha, “O Último Romântico”, hit pop dos anos 80, ganhou um clipe dirigido por Ava Rocha, que apresenta a Lapa, suas vielas e ainda homenageia o clássico beijo de Yoná Magalhães e Othon Bastos em “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), numa versão, obviamente, homossexual.
Outra faixa que merece destaque é “Antigo Verão (Embarque para Citera)”, que foi musicada por Arthur sobre um poema de Antonio e lançada em seu primeiro EP, lá em 2013; aqui ela ganha uma produção mais pop, que ecoa os anos 80 no Rio, com suas festas e loucuras, em versos que remetem aquelas representações de “Rio Babilônia” (1982) ou outros filmes daquilo que poderíamos chamar de cinema brock, como “Menino do Rio” (1982) e “Bete Balanço” (1984).
No todo, “Presente (Antonio Cicero 70)” é um disco ousado, que consegue transformar canções já conhecidas e traz leituras novas, conectadas ao nosso tempo. Com sua roupagem moderna, Arthur Kunz é tão responsável quanto Arthur Nogueira por esse deleite que é esta obra homenagem, já que eles em nenhum momento buscam ser subservientes ao trabalho de Cicero e muito menos às versões anteriores das faixas. Um disco que apresenta Antonio Cicero de forma ampla, como poeta, filósofo, libertário. “Presente” consegue, assim, ser uma obra para iniciados e iniciantes.
Para que você se aventure de vez pelo disco, vale muito a pena ler o relato de Arthur Nogueira, explicando sua relação com Cicero e a importância desse trabalho para ambos:
No dia em que fui mais feliz, eu descobri a poesia de Antonio Cicero. A primeira vez que nos encontramos foi em Belém. Aos 16 anos, pedi a ele que autografasse meu livro de poemas. O poeta contou histórias e riu bastante, como sempre faz. Algum tempo depois, compus uma canção sobre um de seus poemas, “Onda”, e a música nos uniu. De lá para cá, apresentamos espetáculos em parceria, organizei um livro com suas entrevistas e criamos canções novas, como “Sem Medo Nem Esperança”, para Gal Costa. A verdade é que minha vida seria completamente diferente se Antonio Cicero não estivesse presente. É o poeta que me ensina a ler poesia, o pensador a quem recorro nas dúvidas hiperbólicas, o amigo generoso, que me cativa a “amar o doce, o justo, o belo e o saber”. Não foi sobre Homero, Kant ou as vanguardas, a maior lição que Cicero me deu está, por exemplo, em “Água Perrier”: “acho graça até mesmo em clichês.” Apoiado em um inegável e raro rigor intelectual, ele é mestre em celebrar a liberdade e o prazer. Com amor, eis aqui o meu presente, eterno agora. Este não é um álbum de aniversário. Tampouco é sobre o passado ou sobre o futuro. Ele chega para celebrar um presente de muito trabalho e boas notícias. Desejo, meu poeta e amigo, como nas palavras de Thomas Mann, que a vida a partir dos 70 anos propicie “a vantagem de sentir a cada instante a tranquila certeza de sua maestria”.
– Renan Guerra é jornalista e colabora com o sites You! Me! Dancing! e Bate a Fita