Entrevista: Bixiga 70

entrevista por Leonardo Vinhas

“Groove” é uma palavra que pode ser entendida de muitas formas: padrão sonoro, força da natureza, convite à dança. “Transe” entra quase nas mesmas categorias. E, não raro, ambas são equívocos de vocabulário, palavras mal usadas e mal entendidas. Sem usar o verbo, a banda Bixiga 70 une ambos os signos sem dar margem para compreensões equivocadas: seu groove leva ao transe, simples assim. A reboque, ainda trazem um discurso político e social que é tão incisivo quanto sua musicalidade.

A identidade artística do Bixiga 70 é moldada por fatores geográficos e humanos, como conta o baterista Décio 7 nessa entrevista ao Scream & Yell. Porém, a numerosa agrupação (10 músicos) tem como consenso a missão de levar os ouvintes a outros estados de consciência. E é o sucesso no cumprimento dessa meta que faz do Bixiga 70 uma das bandas mais relevantes do cenário independente dos últimos 10 anos.

Instrumental, auto-gerida e com influências distantes do mainstream, o combo paulista conseguiu manter-se fiel à sua proposta sem comprometer o meio de vida de seus integrantes ou a dignidade de suas premissas artísticas. Não, não é clichê. A presença da banda no tradicional festival de Glastonbury, na Inglaterra, neste 2016, não foi mera casualidade, como também não o foi eles terem dividido palco com Tony Allen, baterista lendário que tocou com Fela Kuti, justamente em um Fela Day. Tudo é resultado de uma estratégia consciente e de um trabalho orientado para esse fim.

O novo álbum, primeiro a não ser titulado de forma sequencial, é “The Copan Connection”. Nele, o parceiro de longa data Victor Rice (norte-americano radicado no Brasil, ex-integrante das bandas The Scofflwas e Easy Star All-Stars) transforma faixas das três placas anteriores em dub, numa ponte que liga Jamaica, África, Pernambuco e muitas outras localidades. Poucos dias antes de embarcar para Glastonbury (onde, contagiado, o público britânico fez festa e até trenzinho no show), o baterista Décio 7 explicou a gênese desse novo rebento e discorreu sobre as implicações políticas e espirituais da sua música.

Mesmo que associado ao afrobeat, o Bixiga 70 incorpora muitas outras influências, como a música da tradição religiosa afro-brasileira, o funk setentista… Queria saber se, na percepção de vocês, o dub dialoga com essa base de referências ou se ele entrou mais como uma vontade de experimentar algo novo.
Vou te explicar um pouco da nossa origem, porque eu e o Cristiano Scabello somos os dois sócios-fundadores do Estúdio Traquitana, que tem muito a ver não só com o nome da banda, mas com o trabalho que a gente desenvolve. E u e o Cris tocamos juntos há 16 anos. Tínhamos uma banda de reggae chamada Afetos, que começou no colégio e foi se profissionalizando, participou bastante do circuito reggae de São Paulo e do Brasil. Os cantores saíram mais tarde, e a gente foi se encaminhando naturalmente para um som instrumental. Foi quando a gente começou a tocar num lugar chamado Susi em Transe, aqui em São Paulo, na rua Vitória. O lugar tinha a festa Dubversão Sound System. Então o dub faz parte da nossa formação musical de raiz. Temos uma banda, o Rockers Control, que trabalha há uns 12 anos com essa linguagem. A nossa ligação com o Victor veio a partir daí. É a continuidade de um trabalho que já fazíamos com o Rockers Control.

Ter batizado o disco de “The Copan Connection” tem 110% a ver com o Victor, imagino, já que ele, mesmo sendo norte-americano, é sinônimo de dub no Brasil.
Com certeza. E olha, nosso estúdio fica no Bixiga. O MZK, que faz nossas artes, mora naquele edifício grandão que tem no fim da (Avenida) Rio Branco (no centro de São Paulo). A gente brinca que faz o nosso disco inteiro naquele triângulo Bixiga-Copan-Rio Branco. A janela da sala do MZK dá para a janela do Victor (risos). A gente brinca que tem um triângulo onde fazemos nossos discos, daí “The Copan Connection”. E desde o primeiro disco que a gente desenvolve esse trabalho. Desde nosso primeiro vinil, quando lançamos o compacto “Tema de Malaika”, temos esse hábito de zerar os faders e fazer o remix, a versão dub. Foi bem natural, orgânico. A gente nem pensava: “Nossa, vamos lançar os dubs”. Mas pensei em lançar um compacto como se fazia na Jamaica: a canção original e o dub de outro lado. O segundo disco a gente fez pelo [selo norte-americano] Names You Can Trust, que lançou “Ocupai” e “Kalimba”, duas faixas do segundo disco que foram como tinham saído mesmo. Aí nem saíram dubs. Mas eu tinha lançado a ideia dos dubs pro Chris Eckman (ex-The Walkabouts), do selo alemão Glitter Beat, que está sendo o grande responsável pela divulgação do nosso terceiro álbum pela Europa. O Chris se empolgou muito.

Bem, você citou a Alemanha, e isso dá brecha para falarmos da carreira internacional do Bixiga 70, que é bastante movimentada. Chama a atenção porque isso vai na contramão do que diz a enorme maioria dos produtores e palestrantes de festivais e encontros pelo país. O papo sempre é: “Tenham um formato enxuto, que facilite viagens”; “Dupla é o melhor formato, pois economiza até em quarto de hotel”. E vocês são uma agremiação de 10 músicos, que faz um som sem letras. A música instrumental no Brasil tem uma longa tradição que remonta até às orquestras do rádio, nos anos 1940, mas mesmo assim não é preciso ser estudioso para saber que os instrumentais sumiram do mainstream nacional e estrangeiro há tempos. A que você atribui o fato de que essa realidade totalmente atípica do Bixiga 70, que contradiz esses ditames mesmo do mercado “alternativo”, esteja dando tão certo?
É até engraçado, porque tem uma frase do Marcelo Dworecki, baixista da banda, que diz que o Bixiga 70 é a festa do improvável (risos). Acho que dá até uma resumida técnica dessa análise que você fez, e que eu nunca tinha visto ninguém fazer uma análise completa do ponto de vista artístico e mercadológico assim (risos), mas a gente reflete sobre isso às vezes. Sou muito envolvido com o processo já desde dentro, não sei me distanciar tanto para olhar de fora, mas acho que a chave do nosso trabalho é o trabalho (risos). O trabalho constante, disciplinado. Desde o começo da banda a gente tem objetivos claros, criou metas. Todos têm uma carreira musical de 15 anos ou mais, já criou uma história na música independente. Acho que a gente adquiriu um conhecimento para saber tudo o que dava errado, tudo o que a gente não queria fazer mesmo não tendo uma clareza de qual caminho seguir. Já tem uma parte que é uma sorte mesmo, de reunir um grupo de pessoas tão especiais e talentosas que se propôs a fazer um trabalho coletivo num momento em que o mundo está com uma tendência mais individualista. Acho que o ponto-chave da história é o bairro do Bixiga, o nosso estúdio Traquitana, que foi onde a banda nasceu e é onde a gente desenvolve nossos projetos. Acho que isso contribui muito para essa receita, para a gente conseguir organizar melhor nosso trabalho. Mas acredito muito na força da música mesmo. Existe sim a estratégia de mercado, a gente procura fazer as coisas de forma sincronizada, a gente tem a autogestão que faz uma diferença. Não temos feito muito isso, mas a gente costumava se reunir uma vez por semana para cuidar de funções práticas e burocráticas da banda. Não é todo mundo que tem essa dupla função, mas metade da banda sim. Tivemos a sorte de ter a resposta do público. É isso que alimenta o artista. A gente vai jogando o trabalho pro mundo e aquilo vai retornando, alimentando essa cadeia. A gente é muito feliz de conseguir viver essa realidade que, como você disse, tinha tudo para dar errado.

Quando o primeiro disco de vocês saiu, ele chegou até mim de várias formas diferentes: por amigos, por agenda de shows constante, por matérias nos mais variados tipos de veículos. Então imagino que o álbum de estreia teve um peso grande para vocês, além de ser uma prova de que vocês já tinham mesmo essa organização de trabalho, essa estratégia.
Essa coisa do primeiro disco é importante para o artista se estabelecer e mostrar seu trabalho. Acho que a gente teve essa sorte. Isso que você falou de chegarmos por vários lados é a força do trabalho em si, a disciplina e o trabalho… A gente gravou o primeiro disco, a banda tinha seis meses! O processo era muito cru. Por todo mundo ali trabalhar com áudio, ter vários produtores dentro da banda, gravamos o disco rapidamente. Mas não tínhamos noção da repercussão que o disco teria. Foi muito legal o disco foi chegando muito rápido, foi agradando. Desde agosto de 2010, a gente ensaia uma vez por semana, toda semana. Em determinados períodos, chegam a ser três ou quatro. A gente trabalha bastante. E dentro desse contexto, é legal fazer um disco pelo qual você é reconhecido. Mas é a primeira página. Para depois você seguir desenvolvendo um caminho artístico que valha a pena ser acompanhado e vivido, o trabalho aumenta.

O convite para o Glastonbury é consequência desse trabalho? Foi algo que vocês buscaram conscientemente?
A coisa do Glastonbury veio especificamente na Semana Internacional da Música, em São Paulo (A SIM São Paulo). Fizemos um show case de 20 minutos e o curador desse palco no qual a gente vai tocar ouviu e gostou. Já tinha ouvido falar da gente, porque a gente já tem uma carreira internacional que está muito ligada a feiras, coisas assim. A gente foi tocar no Porto Musical, em Recife, 2012, e foi convidado pelo Peter Hvalkof, curador do Roskilde, (para tocar) na Dinamarca. A gente estava num momento de transição, de gerenciamento, foi uma loucura. Com pouca grana, e viajar para tocar num festival? “Vamos comprar uma passagem no cartão de crédito para mostrar nossa música pro mundo”. E deu certo! A gente começou a percorrer esses caminhos: tocou no SIM, no Porto Musical, foi tocar no Global Fest, dos EUA, em janeiro do ano passado, e é o mesmo esquema: com nossos recursos, guardando dinheiro de disco… A gente investe bastante nesse mercado.

Mesmo sem usar palavras no som, o Bixiga 70 tem uma declaração política clara. Há um estilo de vida associado, há a proposta de quebra de preconceitos, a presença em eventos que tenham um caráter mais combativo. O próprio nome da banda já é uma declaração política, por já trazer tanto uma carta de apresentação estética como um conceito geográfico e temporal. O quanto isso é importante na percepção das pessoas – ou melhor, o quanto vocês querem que as pessoas percebam isso?
Falando assim, de uma postura política, nós consideramos que trabalhar especificamente com a arte, fazendo aquilo que a gente acredita da forma que a gente acredita, com as ferramentas que nós temos, criando nosso meio artístico… essa cultura do faça-você-mesmo que a gente tem como formação de base da música já é uma posição política perante a sociedade, ao mundo, aos políticos. E perante a vida. Porque sobreviver de arte já é um desafio. Levando em consideração todo o sistema sócio-econômico-político do país, acho que a pessoa se dispor a viver somente disso, eu encaro como uma postura política. A gente se coloca referente a questões políticas, sociais, de racismo, de machismo, de desigualdade, porque pra gente isso é necessário como seres humanos, e acho que pra quem trabalha com arte de uma forma verdadeira é difícil dissociar a vida pessoal da artística. A gente acha mais que uma obrigação se colocar em questões de interesse coletivo onde a maioria pode se beneficiar. Falar sobre o bairro, sobre o Centro De São Paulo, que é um lugar que foi esquecido e abandonado, que teve sua época de glamour e foi sendo depreciado pela especulação imobiliária e pela gentrificação, é uma obrigação nossa, por carregarmos o nome do bairro na banda. Por ser um bairro em que as pessoas se conhecem, estão na rua, se cumprimentam enquanto caminham… de forma geral (acontece o contrário), é se fechar, se proteger, fechar escolas, levantar presídio, morar num condomínio cheio de contas pra pagar… Acho que a gente faz um discurso do que a gente acredita de fato.

Na Virada Cultural deste ano houve muitas pessoas que se manifestaram politicamente, inclusive com mais eloquência do que apenas gritando “Fora, Temer”. O público do show de vocês, aliás, foi um dos que manifestou mais intensamente esse comportamento. Na percepção de vocês, esse tipo de atitude ainda é um foco isolado, pertinente a um grupo muito pequeno de pessoas, ou já se nota alguma mudança de fato na atitude política das pessoas, especialmente as mais jovens?
Está mais que claro pra todo mundo que tem um mínimo de percepção e não está tão sujeito às informações da mídia… Parece que a gente vive um momento crítico de intolerância mundial. A gente teve essa sensação na Europa há uns dois anos atrás, quando a extrema direita ficou mais forte. Existem vários movimentos de repressão em atividade no mundo, e isso é preocupante. Teoricamente era para a civilização estar evoluindo (risos). É um momento em que as pessoas estão parando para refletir sobre tudo que está acontecendo. Particularmente fiquei perplexo com o que está acontecendo no Brasil, acho que todos devem estar. Depois de você ver anos de um governo trabalhando para o povo, mesmo que com vários defeitos, e ter uma presidenta eleita pelo povo ser destituída dessa forma por pessoas altamente questionáveis, acredito que isso faz parte de um processo de alienação da informação. Da contrainformação, na verdade. Mesmo com todas as pessoas podendo expressar seu ponto de vista nas mídias sociais, existe, de certa forma, muita manipulação na informação. E certas pessoas não desenvolveram o hábito do questionamento. Não do questionamento negativo, mas de entender o processo das coisas que estão acontecendo. A isso se soma um individualismo muito grande, que é parte desse momento do mundo também. As pessoas se preocupam demais com o que vai afetar diretamente a vida delas individualmente. Chegará um momento em que isso vai ter que mudar, nem que seja pelas condições de saúde do planeta. As pessoas vão ter que se unir mais em torno de um objetivo comum.

Por tudo o que nós falamos até aqui, fica claro que vocês têm uma visão da música como arte, e não apenas entretenimento. Claro que você pode se entreter com ela, mas há essa preocupação com outros papeis que ela pode exercer. Já vi muitos shows de vocês, presenciei algumas situações de espectadores estarem se entregando totalmente ao momento, uma espécie de transe mesmo…
Sim. A gente já teve diversos relatos incríveis. De eu estar saindo de um show e uma pessoa parar pra me falar: “Pô, esse show me lavou a alma”, “Estava passando por um momento difícil e esse show melhorou minha vida”… Quando a pessoa consegue se libertar física e espiritualmente e sair das coisas que afetam o dia a dia, isso faz muito bem, e nossa música tem esse objetivo mesmo. É uma coisa trabalhada conscientemente desde o início da banda. A gente tem dois percussionistas ogans na banda, o próprio Cris Scabello e o Rômulo Nardes. Eu já toquei em diversas festas em terreiro, mas não tenho uma ligação religiosa. Mas nossa cultura musical tem uma base muito forte na música nagô, do candomblé de Pernambuco. O Eder “O” Rocha, que era do Mestre Ambrósio, é um cara muito importante nessa formação nossa. Ele é um mestre mesmo: eu, o Cris e vários amigos em comum estudamos com ele. A gente sempre teve, tanto através do terreiro como do reggae e do dub, muita ligação com a música mântrica, que te leva a um estado de concentração, um estado alterado de consciência, ao êxtase. Quando a gente montou a orquestra e começou a trabalhar essas coisas, tínhamos a intenção de alegrar o povo. A gente usa muito essa expressão, “alegrar o povo”, e não é de uma forma banal. É trazer energia, trazer a alegria de a pessoa poder movimentar o corpo e dançar, viver o momento de uma forma diferente. Por isso sempre o tambor esteve presente nas tradições ritualísticas. Ele é uma ferramenta do transe. Sem dúvida foi por isso que a Igreja Católica o tirou dos ritos. E a gente está tendo um desdobramento dessa percepção: o Rubens Crispim, que é um cara que fez um minidoc sobre a gente lá em Nova Iorque, foi chamado para filmar os nossos shows no SESC Pompeia do lançamento do nosso terceiro disco. Lá ele conheceu o Milton Leal, um produtor executivo e jornalista que entrou num transe absoluto com nossa música. E eles começaram a conversar sobre a ideia de fazer um filme que contasse a história da banda através desse transe. Eles abraçaram a ideia, e foram com a gente para os Estados Unidos, acompanharam nossos shows por lá, e também outros shows no Rio e em São Paulo. O filme vai se chamar “Segue o Baile”, com esse viés do transe através da música.

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.

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